17 Fevereiro 2019      13:30

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O Disco Perdido – Era Uma Vez…

Pode parecer estranho para alguém nascido depois de 1990, mas houve uma época em que a música influenciava o comportamento de vastas franjas da sociedade. Se um determinado álbum influenciava futuros álbuns, isso não significava apenas que um determinado músico influía no trabalho de outros músicos, mas algo muito mais abrangente. Grupos mudavam de hábitos, criavam novas rotinas, e só então eram produzidos discos para reflectir as novas perspectivas. Mas, é claro, tal leva à seguinte proposição: antes da vida havia o disco, aquele disco específico, o disco primordial. Encontrar esse disco é missão para muitas vidas e para algumas, apenas algumas, muito poucas pré-disposições, pois, por princípio, nunca será encontrado, é um disco mitológico.

E, no entanto, esse disco foi concebido – enfim, assim teve de ser, uma vez que foi com ele que tudo começou, e foi a partir dele que surgiram todos os outros, uma parte dos quais já tivemos oportunidade de escutar com atenção.

Para melhor esclarecimento, deixo-vos este instante:

Certo dia, enquanto caminhava de fones nos ouvidos (estava a ouvir o Architecture & Morality, dos OMD), decidi ir pelo caminho mais longe de regresso a casa, o que implicava descer pela ruela mais próxima, voltando subitamente à direita. A meio caminho dos não mais de trezentos metros de descida pronunciada, pelo canto do olho, como se empurrado por uma saliência na parede contígua, vi surgir um candeeiro. Olhei de frente e, de certo modo, irresponsavelmente, pois sabia que o Sol se encontrava naquela direcção. Fui de imediato esmagado pelo excesso de luz e afastei o olhar – Não suspendi logo a marcha, dei duas passadas no entretanto. Esses passos foram decisivos: quando me detive estava exactamente no enfiamento do candeeiro com o disco solar, ambas as formas em perfeita consonância. Ah, que privilégio, um eclipse só para mim! A imagem inequívoca do belo. Tenho de a fotografar, pensei então. Assim fiz, usando a câmara do telemóvel (que já me resolveu inúmeros problemas, diga-se). Mas não naquela vez. Tentei, tentei e voltei a tentar. Não, não era aquilo que os meus olhos viam, não era aquele o contraste que queria fixar para sempre, a tonalidade invertida, o sublime da comoção. Não!

Prossegui, desiludido. Que merda, um momento daqueles, ainda por cima – os OMD a isso obrigam – algures entre a metade do Souvenir e o final do Joan of Arc, passando necessariamente pelo Sealand, pois claro, desaproveitado para sempre.

Desperdício? Claro que não, exagero do momento, essa fotografia existe, apenas, também ela, no estado mitológico, nas (assim as desejo) vastas regiões exploradas e por explorar da minha mente.

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A busca não pode parar, é quase tudo o que sabemos, os que insistimos em procurar. Trocamos vontades mais do que razões. Acreditamos no desejo, mas não o misturamos com o espírito de missão, não a partir de um certo nível, apesar das diferenças. Quanto a isso, separamo-nos em dois grupos, racionalistas e peregrinos. Fazemo-lo de livre vontade e como garantia de sã convivência, pois mais vale uma separação segura e cortês do que a dissimulação constante. Simplesmente, uns acreditam mais no método científico do que outros; e por uma vez, podemos dizer, para os que crêem menos, o efeito religioso não tem efeitos nocivos. Nada de mais, nada que nos faça querer derramar o sangue do outro. Mais facilmente verteríamos o nosso propositadamente, uma vez nenhuma das partes exclui a hipótese do sacrifício.

Em momentos de sublime desespero (ou de desesperada sublimidade), ouvidos atentos que levam a sensações de puro deleite guiam o peregrino por caminhos necessariamente perigosos, que o peregrino necessariamente não vê como tal, e parece-lhe então vislumbrar o que pode ser essa fita perdida nos tempos (como acontece com os filmes, e mesmo os livros e as histórias que contêm nos últimos, pelo menos, 500 anos, sem a hipótese de reprodutibilidade não há obra, pois a sua existência depende de um processo de validação comprovável por tantos olhares quantos os disponíveis – é o preço da modernidade, e, ironia das ironias, um erro ao mesmo tempo necessário e crasso: procurar o mito no modelo de reprodução mais recente).

Já o racionalista, perante o deleite, faz por o expulsar, através de espasmos (imaginem alguém a sair de um transe doloroso), e finge que não se importa com o fim da busca (enfim, a busca é um fim em si mesmo, diz, mas nunca deixa de elevar o olhar sequioso quando um peregrino lhe anuncia que finalmente encontrou).

Curiosamente, e não sem ironia, alguém que observasse de fora a sucessão de espasmos facilmente pensaria estar perante um qualquer ritual pagão, e sorriria com desdém quando alguém lhe explicasse que eram aqueles os racionalistas, e os outros, os calmos e de olhar inquisitivo, eram, esses sim, dados a crenças estapafúrdias. Os autoproclamados peregrinos… Como se pode ver, não nos distinguimos o suficiente para que uma disputa séria e violenta valha a pena. É fácil de perceber: queremos música, mais e mais e mais… e isso nunca será tudo.

Sou, obviamente, caso não tenham percebido (bem sei que não tinham como), um racionalista convicto.

 

Uma pequena amostra, após aproximação/tentativa e (colossal) ERRO (colossal):

Count Basie – The Atomic Mr. Basie

Joan Baez – Joan Baez

Bob Dylan – The Freewheelin’

The Beach Boys – Pet Sounds

The 13th Floor Elevators – The Psychedelic Sounds

Love – Forever Changes

The Velvet Underground – The Velvet Underground and Nico

Captain Beefheart & His Magic Band – Safe as Milk

Pink Floyd – Piper at the Gates of Dawn

The Mothers of Invention – Freak Out!

Tim Buckley – Goodbye and Hello

Marvin Gaye – What’s Going On

 

E tanto que fica por dizer…        

 

 

Imagem de discogs.com

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