11 Fevereiro 2018      12:23

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O DESERTO DOS TÁRTAROS

O Deserto dos Tártaros (1976), de Valerio Zurlini

 

Tal como referiu Jorge Luís Borges na sua Biblioteca Pessoal, num breve comentário sobre O Deserto dos Tártaros (o livro – Dino Buzzati), é a Poe e a Kafka que Buzzati vai buscar referências. Não se esgota ali a análise, claro, mas é certo que de ambos bebe muito. E sem ser sôfrego, decantando primeiro e só depois permitindo-se saborear. Ainda segundo Borges, as indirectas e outras piscadelas de olhos a Poe foram sempre reconhecidas pelo próprio Buzzati. Já as que supostamente lançava a Kafka, não.

Observando o filme homónimo, de Zurlini – (sublime objecto que mantém a premissa original: Drogo, acabado de ser nomeado oficial, é colocado na fortaleza Bastiani, nos confins do reino, lugar de grande beleza austera, potenciador de visões extremas. Uma vez lá, fecundado pelo espírito do local, pela voz dos já lá estão, nalguns casos há décadas, prepara-se para a chegada dos invasores.) – é a influência de Kafka que salta desde logo à vista.

O universo masculino, preenchido por rituais e repetições, máquina administrativa bem oleada, demasiado diga-se, dirigida a um objectivo pré-definido (a espera pelo inimigo

monstruoso), mas que depressa se percebe que só funciona, enquanto tal, se colocada num canto impalpável dos objectivos a cumprir. Nunca deixa de estar lá, e referimo-nos ao inimigo, não existindo verdadeiramente. Já a consequência é clara e irresistível. “Como um cão”, é deste modo que termina O Processo de Kafka, com a personagem abatida, cumprindo-se a pena de morte. Também os soldados colocados em Bastiani, nas tais fronteiras (montanhosas) do império, vão caindo, nunca deixando de cumprir a sua missão.

Mas em nome de quê? Para quê?

É quando Zurlini se aconchega a Buzzati, pois em ambos há mais mundo para além de Poe e Kafka, (e continuamos a pedir emprestado a Borges) há também “um gosto especial pela epopeia”.

Para quê então? Por uma honra arraigada no dever. Pela grandeza inexplicável assente na virtude. O sopro épico, de superação, que nos acompanha desde tempos e livros no e do limiarda memória, e do qual os que nele se embrenham só se libertam pela morte.

Mesmo perante um inimigo muito mais poderoso, mesmo que o inimigo não passe de um Fantasma (e por isso força ainda mais potente).

Livro e filme são superlativos e bem dignos de um século que julgou ter inventado tudo, mas só se superou quando olhou sem timidez para os Mestres de todas as eras.

 

 

Imagem de agrandeilusaocaminha.wordpress.com