18 Setembro 2021      13:05

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O conto de um sapato que fugiu...

O conto de um sapato

que fugiu

do

dono

a sete

pés

e perdeu o

irmão gémeo

na fuga,

tendo sido

eremita para o resto dos seus duas numa casa de

vestuário

aposentado

,

que era uma sapataria

situad

a na cave de um prédio

onde os filhos

do dono do sapato

fugitivo

viviam.

 

Estamos no ano de 1980, um ano em que tanta coisa aconteceu. Nasceram muitas pessoas e morreram também muitas pessoas. Viver e morrer faz parte do ciclo da vida e esse ano não foi diferente. Houve acontecimentos marcantes que, porque o são, não os esquecemos.

Em ano de chegadas e partidas, há quem seja falado e seja conhecido, em ano de acontecimentos, há um de quem ninguém falou. Nunca seria falado, nunca ninguém o ficaria a conhecer e, por isso, manter-se-ia ignorado do mundo. Parece inverosímil, mas aconteceu, nem mais nem menos do que na cidade de Nova Iorque. Uma cidade que nunca para e onde o anonimato prevalece, pelo menos à primeira vista. Não será bem assim. Quanto mais nela se vive, mais se ganha a consciência de que o mundo é uma ervilha.

Ainda assim, não foi possível ao dono do nosso protagonista localizá-lo, após a sua fuga. Então, o conto que contamos passou-se assim.

Era janeiro, a cidade estava coberta de neve e o frio acompanhava a neve. As temperaturas negativas pediam que se ficasse em casa, sem sair dos quartos dos prédios aquecidos. Roger morava num desses prédios na zona mais antiga da cidade e durante três dias não saiu de casa, tal era o frio. Foi nesse último dia que se começou a preparar uma rebelião por parte mais valioso pertence do homem. Os seus sapatos de cano alto, quase bota, mas sem o serem, decidiram que estavam fartos de ser usados e queriam ser independentes. Ter-se-iam inspirado nos contos de Nikolai Gogol? Quem sabe? Mas acho que os sapatos não leem. Estes eram especiais porque tinham vontade própria. Eram irmãos gémeos, assimétricos, e que não faziam nada um sem o outro. A fuga começou a ser preparada pelo lado esquerdo e o lado direito não teve muitas hipóteses de contestar a decisão já tomada. À noite, durante um nevão que começara bem cedo, saltaram debaixo da cama, aproveitando uma brecha na janela e saltaram para a liberdade. Correram da forma possível, aquela em que os sapatos correm se estarem ao serviço de um qualquer dono. Sentiam-se em liberdade! A liberdade com uma sensação de paz mas de frio ao mesmo tempo.

Porém, na liberdade nem tudo é seguro. Neste caso, escondido do frio, mas à espreita estava um cão vadio que quase dormia. Foi desperto pelo ruído dos irmãos a saltitar. Pensando que seria comida, desatou a ladrar e a persegui-los. Apavorados, ambos seguiram por caminhos diferentes, separando-se. Algo assim nunca tinha acontecido. Seria a última vez que se viam. Apanhado pelo cão raivoso e esfomeado, o pobre lado direito foi dilacerado e deixou de ser sapato para se tornar em partes que não faziam um todo.

O lado esquerdo correu até não poder mais e, sem meia para o aquecer, escondeu-se num recanto onde a neve não chegava e aí adormeceu. Acordaria, dias mais tarde numa estrutura de parede que lhe parecia familiar, mas não era a sua. Estava jogado num monte de seus semelhantes e parentes que não falavam nem sentiam. Decidiu largar as emoções e tornar-se, ele também, um sapato inerte e silencioso. Assim ficou, pensando que se tornara catatónico numa casa de aposentação, quando, na realidade, estava numa velha sapataria do seu prédio e serviria apenas para doar parte das suas componentes aos novos ou ainda úteis sapatos da cidade.