19 Julho 2020      12:26

Está aqui

Naquela noite quente de Verão...

«A rotina não basta ao coração. O grande desafio é, em cada dia,  voltar a olhar para tudo pela primeira vez, deslumbrando-se com a surpresa dos dias.»  Tolentino de Mendonça

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Muitas vezes sinto-me sem tempo. Verdade!!

O rebuliço diário, mesmo semanal, faz-me sentir que o tempo passa depressa demais, sem que consiga verdadeiramente assimilar a essência de cada momento, na devida proporção do desejável...É o trabalho no campo, a arqueologia, a lide de casa, o associativismo e os compromissos políticos e duas crianças, sobretudo tudo  o que envolve essas duas dádivas que Deus me deu.

Mas no meio desse turbilhão de tarefas, dessa inconveniente ansiedade, desses requeridos compromissos, conquistei para mim desde há 5 anos a esta parte um pedaço de tempo de descompressão. Digamos que consegui juntar o útil ao agradável e, desde então, consigo mais ou menos regularmente fazer treinos de corrida, semanalmente. Num determinado momento da minha vida, muito desafiante, temerário até, resolvi mimar-me e perder por semana um par de horas para o exercício e o que demais o mesmo traz.

As corridas foram no início, um quase exercício do retomar da actividade física, de criar distracção e aproveitar para relaxar do copo meio vazio que muitas vezes via no horizonte.

E funcionou claramente!!

Estes aproximados 60 minutos de cada viagem, tornavam-se em momentos de auto-condescência, de profunda reflexão ou, muitas vezes apenas do simples respirar profundo.

Mas logicamente que este é também um momento de profunda solidão. Pelo menos para mim que optei, na maioria das vezes em correr sozinho. Essa circunstância pontualmente já me fez reflectir sobre mim, na minha relação com as pessoas, nas relações em geral, na sociedade, etc,etc,etc. Parece irrefutável que neste mundo outrora quase infinito, agora parece uma divisão de uma casa, onde tudo e todos se conhecem. Conseguimos diminuir distâncias físicas a um clique dum telemóvel ou por uma video-conferência feita através de um qualquer tablet...Temos cada vez mais informação e sabemos de amigos ou colegas de infância que, nas gerações dos nossos avós nunca mais teríamos reencontrado na vida. Permitimo-nos criar e conservar mais amizades, muitas virtuais, numa aparente contabilização numérica, em detrimento do rigor da qualidade individual de cada uma.

Sinceramente, parecemos muito focados em automatismos, em regras e tarefas diárias, em objectivos e metas a cumprir criteriosamente, em ganhar dinheiro para ostensivamente mostrarmos o resultado desse pecúlio. Quase que nos tornámos autómatos, criados para fazer artificialmente tudo, retirando o âmago, os porquês da coisa...Por exemplo, conhecemos o carteiro que nos traz diariamente notícias (às vezes más) impressas? Sabemos o nome do dono da mercearia do bairro? Alguma vez chegámos a casa a um final de tarde de Verão e notámos nas estonteantes andorinhas a vaguear entre ninhos nos beirais dos prédios? Soubemos que o sr. Júlio tinha sido levado pela sua filha para um lar porque já não consegui-a manter a sua autonomia sozinho? Reparámos que ontem a D. Margarida tinha estado a apanhar os limões do limoeiro? Ouvimos o cão do vizinho, o bamby, pela enésima vez a ganir porque sentiu-me chegar a casa?

Às vezes, mas só às vezes, temos pequenas particularidades, meras curiosidades que nos acalentam um sentido gosto pela vida e sua simplicidade e que não deixamos entrar em nós, focados que estamos na aritmética das chatices, dos egocentrismos, das por vezes castradoras responsabilidades.

Pois é… Um dia pensava nisso e que tanta coisa generosa, pela simplicidade e pela beleza que nos rodeia, se torna impercetível a olhos destreinados para o Verdadeiro.

Um dia, ao entardecer, quase entrando a escuridão pela hora tardia, naquela noite quente de Verão, fui treinar, mas fui livre de espírito, solto e limpo de peias, depois de assumir que a vida era muito mais do que aquela pretensa indignidade e artificialidade. Num ritmo moderado mas cadente, lá ia eu já de noite, daquelas típicas de Verão quente alentejano, observando cães vadios a seguir a sua compenetrada trajectória, outros com seus donos, alguns jovens treinando entre mais velhos caminhando e, alguns carros passando lado a lado, iluminando os vultos que se escondiam pela escuridão da noite. E, na passagem de um desses carros noto a aproximar-se de mim um casal com um cão à trela. E de mais perto vejo-os agarrados, ele com a sua mão por cima do ombro dela… vinham falando cúmplices numa quase desbragada felicidade. Cruzaram-se comigo e, confesso, não deixei de olhar para trás. Duas vezes!! Olhei duas vezes para confirmar aquele estado de alma.

Não disse antes mas conhecia de vista aquele casal, do meu tempo de adolescente. Tinham passado mais de 20 anos e recordo de terem iniciado aquela aventura juntos nesses tempos. Nunca mais recordo de os ter visto. Vi-os, juntos, cúmplices, próximos e felizes, como se tivesse recuado vinte anos na sua história. E provavelmente aquela imagem, aquele momento de felicidade e cumplicidade, de compromisso e de confiança já a teria visto antes sem, efectivamente ter reparado.

Muitas vezes, mesmo nos momentos de descompressão, de relaxamento, já dificilmente conseguimos despir o fato do trabalho, o hábito dos mecanismos e o egocentrismo que nos habita vorazmente. Parecemos ovelhas dum rebanho formatadas para seguir cegamente a que leva a dianteira sem sabermos propriamente o que nos espera ou sequer o que pretendemos.

Sabe senhor Padre Tolentino, provavelmente teria tido oportunidade de ter observado uma cena daquelas, umas dezenas de corridas atrás, mas sem dúvida que «O grande desafio é, em cada dia,  voltar a olhar para tudo pela primeira vez, deslumbrando-se com a surpresa dos dias.»          

Provavelmente naquela noite quente de Verão não segui o rebanho, não condescendi com automatismos, quis provar o fruto proibido e foi tão bom….uma mesma ocasião, um igual local pode ser sentido de formas completamente diferentes, assim queiramos nós sair da espuma dos dias que nos consome quotidianamente… Aquele retrato, aquela amostra de felicidade que achamos já só tangível em TV, era comprovadamente verdadeira. Na sociedade do aparente, do artificial, em que tudo é substituível, pessoas inclusive, as relações foram trocadas pela frugalidade e pelo imediatismo. Pretendemos provar a nós mesmos na actualidade que quantidade é preferível a qualidade. Um solteiro ou um divorciado que esteja com mais mulheres será inegavelmente mais  feliz do que um casal a completar 25 anos de união...Como se o viver num palácio, pejado de mobílias e ostentação tem garantia maior de felicidade do que um apartamento t1 num modesto bairro citadino…

Nesse final de corrida, sabe senhor Padre, senti-me capaz de correr novamente o mesmo percurso, realizado e confiante que me sentia. Muitas vezes somos instruídos a tomar decisões, a extinguir emoções, a substituir relações, sem ponderação, sem provarmos da fiabilidade dessa decisão. Apenas por um mimético afâ social. Vimos mais velhos a fazerem, copiamos modelos de figuras públicas que achamos serem referência e no entanto, por vezes, uma mera observação, de tão genuína que é, pode fazer ruir toda a construção que edificámos atrás. Nem sempre seguir a maioria é a garantia do caminho ideal. Muitas vezes é preciso inverter a marcha, contra tudo e contra todos. Às vezes até mesmo contra nós mesmos….