16 Novembro 2019      13:51

Está aqui

N coisas

Muito, muito. Demasiado. N coisas. Tanto, tanto, uma enormidade. Nunca tinha visto tantas coisas reunidas num só local. Havia um espaço pequeno repleto de coisas. Umas absurdas, outras convencionais. Um exagero de coisas que se avolumavam.

Nico Nunes habitava nesse espaço. Era menos do que um pequeno quartinho. Era onde vivia. Nico Nunes tinha ali naquele espaço n coisas. Recolhia-as há anos e anos. Aquilo que no início parecia um gesto normal tornara-se uma obsessão, uma desordem emocional que o levaria, anos mais tarde, a ser internado num hospital psiquiátrico.

Há pessoas que são assim. Preenchem o vazio das suas vidas com coisas fúteis que vão recolhendo e que armazenam em casa, sem delas se desfazer.

Nico vivia num segundo andar e estava atulhado até à porta. Não se lhe conhecia emprego nem nunca se sabe que tenha trabalhado. Homem de poucas palavras, guardada tudo em sacos de plástico, arrumava tudo em sua casa. Sabia exatamente onde tinha recolhido aquelas coisas e o que cada saco continha. Era meticuloso.

Embora aquilo que fazia demonstrasse uma total inutilidade, Nico colecionava. Cada seção dividia-se como as letras do alfabeto. Tinha n coisas, n problemas, n memórias, n palavras guardadas.

Nico Nunes sabia todos os nomes, todos os números. Nico era especial. Enchia o vazio que sentia por dentro com as coisas que os outros não queriam ou às quais não prestavam atenção. Uns de vidas repletas, outros de coração vazio, mas o qual não sabiam encher. Nico era vazio mas tinha uma casa cheia. Pensava n coisas, sabia n pormenores que não sabia expressar. Faltavam-lhe os sons do alfabeto que tinha arrumado em sacos plásticos.

Viveu assim 68 dos seus anos. Viveu no silêncio de um espaço cheio que não fala.

Um dia, saiu para recolher mais pedaços de vida e a porta ficou aberta. Os vizinhos, cuja curiosidade e cuja intolerância não compreendiam o trabalho de uma vida de Nico, entraram, ficaram horrorizados e chamaram as autoridades que internaram Nico de imediato e limparam toda a vida, todas as memórias e pedaços de tudo e nada, guardados naqueles sacos de plástico. Nico, vazio, morreu pouco depois. Não chegaria aos 70.