30 Abril 2017      12:22

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MUTAÇÕES

Acordei, sobressaltado e atarantado com um pesadelo. Imagens passaram na minha mente quando tinha os olhos fechados e não via. Criei ideias na minha cabeça que não sei como foram lá parar. As coisas que não tinham nexo ou não pareciam reais moldaram-se em figuras bizarras e, quando o sobressalto me acordou, como se fosse a cair num precipício. Já vos aconteceu? Foi estranho. Os pesadelos e os sonhos são a parte estranha de nós que só com os olhos fechados deixamos libertar-se.

Quando acordei, parecia não respirar. Custava-me reviver as imagens turvas. Levantei-me e fui à casa de banho para me preparar para mais um dia de trabalho. Aproximei-me, acendi a luz e os meus olhos chocaram com eles próprios, refletidos no espelho. Era eu, mas não era já o mesmo. Nessa mesma noite, perdera os meus cabelos negros e era louro agora. Sem saber como, o pesadelo ou o sobressalto, talvez a queda no precipício mudaram-me. Em mim, mudou o cabelo. A parte da minha identidade que se substanciava na cor do cabelo, num negro tão forte como o cabelo de um asiático, era agora tão louro como um sueco ou finlandês lá de bem perto da ponta norte onde a auréola boreal navega e desliza nos fiordes.

Fiquei sem palavras. Não me reconhecia. Não conseguia reconhecer a imagem que não via como minha. Aquele espelho não me refletia. Senti vontade de chorar. Pensei no que as pessoas iam pensar e antecipei o que as pessoas me iriam perguntar. Pintaste o cabelo? O que te deu? Mudaste o visual? Estás estranho? Estás bem?

Não teria resposta e se respondesse a verdade, ninguém acreditaria. Nem eu próprio acreditava. Não me contendo no choque inicial, gritei com os pulmões cheios de ar, esvaziei a garganta de fúria. Mas não me servia de nada. Não reverteria o que passara a ser, um mutante.

Arranjei-me, cortei as unhas e lavei a cabeça com esperança de que a cor natural voltasse a fazer parte de mim e substituísse aquele cor oxigenada que era eu agora. Entre o yin e o yang, estava perdido nesse intervalo que separa os dois. Culpei-me de ter sonhado com o medo de mudar e culpei-me de ter mudado. Entre as palavras de dor que a garganta já não deixava sair, pesquisei possibilidade para o acontecimento. Googlei tudo e mais houvesse para pesquisar. Nada explicava a cor do cabelo. Nada me dizia que aquele cabelo era o meu e voltaria ao normal. Trémulo nas mãos, nervoso no interior, liguei para um amigo e contei-lhe o que tinha acontecido. Não falou muito. Evitou-me. Parecia sobressaltado e amedrontado também. Era um homem baixo, louro e magro.

Não podia ir trabalhar assim. Não conseguia que me olhassem com ar surpreso e de espanto. Não podia deixar que vissem o cabelo que não era meu e ao mesmo tempo fazia parte de mim. Liguei e inventei uma desculpa para faltar ao trabalho naquele dia. Pus um boné na cabeça e saí. Baixei a pala para não me verem as sobrancelhas. Sabia que não conhecia ninguém. O pavor era tal que nem me ocorreu tal facto. Caminhei apressadamente para o parque. Já estava atrasado. O meu amigo esperaria, ansioso. Ao aproximar-me, vi-o sentado, de costas, com chapéu na cabeça em silêncio. Parecia estranho, diferente. Sentei-me ao lado e olhei, aterrorizado. O meu amigo tinha mudado. Já não era louro. Tinha o meu cabelo. Já não era magro nem baixo. Olhámo-nos em pânico. Éramos mutantes. Não trocámos mais do que 10 palavras. Era preciso encontrar uma solução, desfazer o que tinha feito.

Nisto, abruptamente, como termina esta história, acordei e corri para a casa de banho. O espelho encarou-me com a minha cara e reparei que o meu medo ficara no inconsciente do pesadelo e nada tinha mudado em mim. Era o mesmo que sempre fora. Cabelo preto, corpo médio e barriga saliente.

Detalhe de pintura: Not to Be Reproduced, 1937, Rene Magritte