26 Abril 2019      12:07

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Museu dos Cristos de Sousel - Um sonho realizado!

Foi finalmente inaugurado o Museu dos Cristos de Sousel. Trata-se de um projeto estruturante para o concelho, que concretiza uma aspiração de décadas, por parte da população local.

Em 2003, tive a oportunidade de participar nesta iniciativa e de contribuir para esta história, que conheceu vários projetos ao longo do tempo. Integrei uma das fases deste longo processo.

Nesta data, um novo desafio político foi promovido pelo então Presidente do Município, Jorge Bettencourt Carrilho, que pretendia concluir o projeto do Museu em Sousel com um formato inovador. Esta foi a aposta da equipa autárquica, logo depois do início do século XXI.

Começou então a ser delineada uma estratégia para a implementação do Museu.

Através do Município, o Dr. Rafael Salinas Calado, antigo Diretor do Museu Nacional do Azulejo e na altura conservador do Museu Nacional de Arte Antiga, foi o responsável pela definição de um projeto que incluísse a coleção de Cristos, adquirida pela Câmara Municipal de Sousel, no final dos anos 80 do século XX, ao colecionador Wenscelau Lobo.

Especialista na área da cerâmica e com fortes ligações ao Alentejo (a família paterna era oriunda de Alter do Chão), o Dr. Rafael Calado promove um conjunto de diligências no sentido de avançar com uma nova abordagem relativamente ao projeto museológico que se pretendia implementar.

Na sequência de uma rigorosa avaliação da coleção, que já estava a ser inventariada pelo município, com a supervisão da Dr.ª Ana Isabel Machadinha, foi constituída uma equipa de trabalho que integrei, de modo a definir os conteúdos programáticos para o então designado Museu Municipal de Sousel. Desta equipa fazia também parte a Dr.ª Cristina Monteiro.

Gradualmente, os “Cristos” que estiveram durante décadas encaixotados no posto da GNR, passaram para as reservas criadas pelo Município, onde foram inventariados pelas técnicas mencionadas anteriormente.

O Dr. Rafael Calado, profundo conhecedor do processo de aquisição da coleção de Cristos por parte da Câmara Municipal de Sousel e do seu valor, considerou que, para fazer nascer um espaço cultural com determinadas características, era necessário que o mesmo reunisse elementos essenciais à identidade da população souselense, o que faria todo o sentido como iniciativa de valorização concelhia.

Para que o objectivo da criação do Museu em Sousel fosse alcançado, era indispensável um programa, uma coleção ou coleções e um edifício que lhes correspondesse. Por várias razões, nomeadamente a falta de qualidade de alguns dos objectos que integravam esse acervo inicial, considerou que um Museu dessa natureza não podia ser apenas dedicado a uma coleção de Cristos, nem mesmo podia ser intitulado como o Museu dos Cristos.

Referia que o vasto conjunto de imagens, reunidas pelo antiquário de Borba, constituía um aglomerado muito numeroso, mas sem qualquer critério de coleção. Considerava que a partir dele seria possível selecionar peças de modo a constituir conjuntos e em virtude dessa etapa, formar coleções de imagens.

Portanto, defendia a criação de um projeto mais abrangente, que permitisse a definição de um Museu identitário, que remetesse o visitante para as características endógenas da do concelho e da região. Para além dos Cristos, seria necessária a integração de outras vertentes relacionadas com o passado e o presente de Sousel, num período em que a realidade social e económica estava em mudança.

A Câmara Municipal tinha adquirido numa fase posterior à coleção de Cristos um conjunto de utensílios e alfaias agrícolas concebidas por um artesão local, que poderiam vir a constituir outro dos núcleos do futuro Museu, devido ao seu valor e significado etnográfico.

Contudo e segundo a opinião do Dr. Rafael Calado, estas duas coleções deveriam integrar o futuro espaço museológico, mas não eram suficientes para constituir um museu específico de Sousel. Era necessário realizar um cuidadoso e rigoroso trabalho de terreno que permitisse reunir informação necessária e indispensável para a definição da identidade souselense, nas suas características fundamentais.

O meu contacto com o Professor Rafael Calado foi através do Mestrado em Museologia da Universidade de Évora. Sendo meu docente num dos seminários de investigação, considerou que eu teria o perfil adequado para integrar a equipa que tinha definida no âmbito desse projeto.

Aceitando o desafio, iniciei as minhas funções nesse território como consultor do então Instituto Português de Museus. A minha tarefa consistia na recolha de elementos, no terreno, que permitissem a constituição de um programa museológico para o futuro Museu. Da avaliação dos materiais recolhidos e identificados, iria depender a organização das coleções e, consequentemente, a elaboração dos conteúdos programáticos. Era este procedimento que poderia dar origem a um consistente projeto museológico e que viria a definir a vocação específica do Museu Municipal.

Nesse sentido, dando cumprimento às diretrizes do coordenador e em estreita colaboração com a equipa de trabalho do Município, percorri todo o concelho, fotografando, inventariando, recolhendo depoimentos e histórias de vida, de modo a que pudessem ser integrados diferentes materiais, documentação e objetos para o desenvolvimento do projeto. Essa missão levou-me ao contacto com diferentes pessoas e instituições, que estavam desejosas de ver o Museu devidamente concretizado em Sousel.

A minha tarefa inicial, de acordo com o protocolo estabelecido entre o Município de Sousel e o Instituto Português de Museus, consistia no trabalho de recolha, estudo e caracterização do património (nas suas diversas vertentes), com o objectivo de identificação de um acervo que servisse de base à programação do futuro Museu. Entre Fevereiro e Junho de 2003, desempenhei as minhas funções enquanto consultor do IPM. Entre Agosto de 2003 e Fevereiro de 2004, passei a cumprir as mesmas funções no âmbito de um contrato de prestação de serviços estabelecido com a autarquia.

Foi desenvolvida uma investigação, sob a supervisão do coordenador Dr. Rafael Calado, sobre as seguintes temáticas relativas à natureza e à adaptação do homem à natureza: a serra, o montado e a pastorícia; as ervas, os temperos e os saberes medicinais; a extração de cortiça; o azeite, o mel, o vinho e o queijo; a culinária e os enchidos; a evolução e características da actividade venatória; a tradição taurina; a indústria moageira; a produção de cal; o urbanismo, a arquitetura e a história das freguesias; as crenças, as lendas, os contos, a poesia popular e as tradições.

Durante meses, percorri a Serra de São Miguel, falei com antigos artesãos, agricultores e abegões, assisti à produção de vinho na Herdade do Mouchão, compilei os dados biográficos do cavaleiro tauromáquico Pedro Louceiro, escrevi parte da história do Grupo de Forcados Amadores de Sousel, acompanhei e fotografei a campanha de extração de cortiça no Cano, participei na Romaria de Nossa Senhora do Carmo, identifiquei o espólio da Santa Casa da Misericórdia local, estudei a tradição do folclore em Casa Branca, assisti à Benção do Gado em Santo Amaro, visitei fábricas de enchidos e de queijos e identifiquei e recolhi alfaias agrícolas dispersas por todo o território.

Felizmente, com o apoio do Município, foi possível utilizar um pavilhão na zona industrial como espaço de reservas, para onde iam sendo recolhidos e devidamente acondicionados todos os materiais disponibilizados pelos proprietários. Havia um pouco de tudo. Alfaias agrícolas, talhas, objectos etnográficos e utensílagem doméstica, sinais de um tempo em que a agricultura tinha um papel preponderante na comunidade. No processo de recolha, todos os funcionários municipais, desde os motoristas até aos assistentes operacionais, deram o seu apoio e colaboração pontual, consoante as necessidades. As minhas funções incidiam também sobre a monitorização das condições de conservação e a produção de documentação a nível do inventário.

Ao longo das semanas de trabalho, foi possível constatar que o concelho de Sousel, há semelhança do que acontecia um pouco por todo o interior do país, era afectado por problemas como a reduzida densidade populacional e o envelhecimento generalizado da população residente. O sector agrícola, que tinha tido um protagonismo inegável ao longo de décadas, encontrava-se então em franco declínio. Era urgente resgatar essas memórias e valorizar essa herança, nomeadamente a nível actividades tradicionais e das tradições orais.

O projeto do Museu Municipal era apontado como uma alavanca de desenvolvimento, com um potencial atrativo que podia trazer benefícios em termos económicos, como consequência do crescimento turístico que se pretendia alcançar.

De todas as atividades desenvolvidas, destaco a inventariação da coleção etnográfica do Sr. Libério Justa, grande entusiasta da criação do Museu Municipal e que desde a primeira hora, se mostrou disponível para colaborar na iniciativa. Também importante foi o registo dos bens da Paróquia de Sousel, dispersos pelas diferentes igrejas da localidade, trabalho desenvolvido a pedido do Sr. Padre António Nabais. Recordo que o pároco tinha o sonho de criar um museu de Arte Sacra na Igreja do Convento de Santo António. Com a ajuda do Dr. Rafael Calado, foi possível persuadi-lo a incluir esse desejo na delineação do futuro Museu Municipal de Sousel.

Nesse período, recordo-me de vários telefonemas feitos para a Câmara Municipal, de grupos de turistas organizados no Norte de Portugal, que queriam organizar excursões para visitar a famosa coleção de Cristos em Sousel.

Era necessário tempo.

O Dr. Rafael Calado considerava que só depois de cumpridas as etapas a nível da recolha e identificação de acervos e da documentação científica produzida, a nível do estudo e inventariação dos objectos e definido o programa museológico, seria possível avançar para a criação de um compatível projeto arquitetónico.

Este extenso trabalho incluiu também a participação em diversas iniciativas, nomeadamente a FESCAMPO 2003, que contou com o apoio da Fundação da Casa de Bragança, na cedência de material expositivo para apresentação dos resultados preliminares sobre o projeto. Foram igualmente efetuadas visitas técnicas ao Lagar das Varas de Fojo em Moura e ao Centro Cultural Raiano de Idanha-a-Nova, no sentido de partilhar experiências e conhecimentos e consolidar, deste modo, a pesquisa que estava a ser feita em Sousel.

Portanto, a primeira fase das actividades desenvolvidas para a implementação do projeto estiveram baseadas sobretudo na pesquisa de informações e recolha de objectos no território, que constituíssem testemunhos válidos para a compreensão do concelho em diversos sectores, nomeadamente a nível social, económico, político e religioso. O processo de investigação incidiu sobre a necessidade de preservação de um património coletivo, que pudesse dar origem a um plano estruturado e rigoroso para a criação do Museu Municipal.

Estou convicto de que, com a conclusão de um processo com décadas, o Museu dos Cristos de Sousel, finalmente concluído, será uma infraestrutura fundamental para o concelho, contribuindo para o desenvolvimento do território. Seguramente que o espírito empreendedor e a sólida formação dos técnicos que sempre estiveram ligados ao projeto, com claro destaque para a Dr.ª Ana Isabel Machadinha, este projeto será uma referência a nível nacional e internacional.

Parabéns ao Município de Sousel por ter acreditado nesta ideia e por ter concretizado o projeto, com um formato seguramente inovador!

Foram vários os capítulos, mas felizmente o desfecho foi o esperado!

 

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