10 Abril 2016      15:40

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O MUNDO PEDE-NOS CALMA

"INCONSTÂNCIAS"

Faz uns tempos lembro-me de ter lido uma lenda dos Cherokee chamada “O conto dos dois lobos”. Não há dia em que eu não descubra lendas dentro do mesmo género e confesso ser uma fã das histórias dos nativo-americanos. A mestria com que nos arrebatam é proporcional á simplicidade das palavras utilizadas para nos dizer algo geralmente bastante profundo. Aquele género de profundo para que nós, pessoas do mundo novo (novo, não melhor), deixámos de ter tempo.- Eu faço questão de fazer esse tempo. Perceba, caro leitor, eu continuo ainda uma dessas sonhadoras que vive com os pés no chão mas com a cabeça nas nuvens. Espero avidamente pelo dia em que me vou arrepender pelos escassos minutos que passo a sonhar, a beber o sonho das palavras dos outros sonhadores, mas até agora tenho tido sempre a sensação de que ganho mais tempo. Vou acumulando tempo nas palavras e nas histórias onde vivo e quando chego á vida a vida parece sempre diferente.

Com esta lenda não foi diferente a não ser pela intensidade que tomou em mim – é curioso pensar no poder das palavras. A forma como vivem em nós e em como as vivemos, e de toda essa vivência o desespero de nunca as poder viver tanto quanto elas vivem. -,a forma como cresceu em mim, o efeito que teve nos meus olhos. Porque as palavras transparecem nos nossos olhos. É o primeiro lugar onde elas transparecem porque de resto a metamorfose é interior. A metamorfose das palavras é sempre, num primeiro momento, interior. Depois nota-se nas pupilas dilatadas, no clarear da sua cor, no redondo do seu espanto. É a expressão do soco no estômago, do baque no peito, da compreensão crua. O despir de todas as camadas de identificação humana e ser apenas o humano, ainda sem as identificações, ainda sem a carga social, ainda sem o mundo ao seu redor. As palavras embatem-nos ferozmente e nós somos humanos desnudos e acarinhados pela tragédia de sermos humanos desnudos. 

Fui pequena, caro leitor, fui muito pequena ao ler aquela lenda que me falava de dois lobos que se debatem continuamente numa luta fervorosa. Dois lobos que lutam sofregamente dentro de nós: um negro, cheio de raiva, de ressentimento, de tristeza, de ego; o outro, alvo, vivendo de alegria, de paz, de tranquilidade e humildade. Fui pequena quando na lenda dizia que o lobo que ganha é aquele que nós deixamos ganhar e fui ainda mais pequena ao compreender que a palavra “ganhar” me deixou a pensar no quanto eu não quero ganhar. No quanto eu quero ter apenas um minuto de descanso, de paz, de clemência deste mundo de demência. No quanto eu definho por mais tempo para sonhar nas palavras e com as palavras.

Sei que hoje não sou a escritora (ou talvez a pseudoescritora, a que tenta crescer) a que está habituado. Sei que o acostumei a uma voz gritada, á imagem do punho sempre no ar, da revolta a sair esbaforida da garganta como tiro certeiro. E, não se engane, ainda o sou. Mas não o sou apenas – hoje deixo-lhe palavras brandas porque gritar muito deixa-nos roucos, por vezes. Gritar em demasia retira-nos a voz. Hoje estou a domar os meus lobos e deixo-o espreitar porque, cá para nós, consegue ver quanta beleza existe nesse momento?

Esquecemo-nos desse pormenor como da sombrinha num dia mais escuro: nunca pensamos que possa chover porque não é habitual chover. Nunca pensamos que possa chover porque a vida pede-nos que pensemos no jantar de logo, nas horas a que temos de deixar os miúdos na escola, nas contas que poderão chegar hoje para pagar e naquelas que vencem hoje e já devíamos ter pago. Pensamos sempre com os nossos pés nunca reparando nos nossos pés e, quando chove, praguejamos o incidente o resto do dia. Esquecemo-nos de reparar na beleza: na dos outros e, principalmente, na nossa.

Não. A beleza não está no invólucro, no pacote que nos calhou para navegar esta vida. Não está no cabelo apenas, na face apenas, nos olhos apenas: a beleza está além, na alma, na forma como trazemos a alma no corpo e integramos o corpo na alma. A beleza está na capacidade de fazer as pazes com os lobos e de fazer com que os lobos façam as pazes e, pelo tempo que for, aproveitar aquele pleno silêncio de ser todo e não dividido. De ser a Inês, a Joana, a Sofia, o André, o Ricardo. De ser a Inês no mundo, a Inês com o mundo.

A beleza está nas palavras que nos assolam repentinamente quando escolhemos não escolher o nosso lobo mas aprender a viver com ambos. As palavras calmas e transparentes que brotam de nós quando já não as dizemos com urgência, por urgência, mas com a quietude de quem sabe que gritar muito deixa-nos sem voz.

Os escritores sabem disto. Os escritores sofrem muito porque têm sempre demasiadas palavras a dizer. – É a forma que os escritores usam para se encontrarem: as palavras. Dizem-nas num sentido, depois no outro. Mais belas, mais rudes. Mais eloquentes, mais descuradas. Os escritores sofrem muito principalmente porque quando têm muitas palavras a dizer não sabem como as dizer. Têm que as domar e que as desconstruir e desconstruir pede-lhes um trabalho emocional que os desgasta. Mas que os deixa em paz. Penso, no fundo, que todos sabemos disto.

Fui pequena, caro leitor. Fui pequena em todos os momentos em que o meu peito se estreitou porque as palavras o apertavam com a mesma doçura com que uma mãe abraça a sua cria. Fui pequena em todos os momentos em que, de um só abanão, percebi que perdia o meu centro e, principalmente, a guerra com os meus lobos. Que perdia o que ainda existe de bom e maravilhoso e mágico no mundo. – E, garanto-lhe, não é nada disso que está a pensar. Não é nada disso que acha ser o principal na sua vida. Isso é apenas a sociedade a dizer-lhe que precisa de muito mais do que realmente precisa.

Isso é apenas a sociedade a ser a sociedade. A puxá-lo, a empurrá-lo, de si, contra si. Para fora de si. São apenas os mídia a bombardeá-lo com o novo medo do século, a nova doença do século, a nova calamidade do século. São os mídia a dizer-lhe que o Daesh vai explodir com a sua casa, que o seu filho mais novo pode consumir uma nova droga, que amanhã poderá morrer num acidente de automóvel. É a sociedade a ser sociedade e a deixá-lo surdo e cego. Fui pequena, caro leitor, e podia jurar que nunca me senti tão bem ao ser pequena.

Repare, todos nos querem pequenos. Todos aqueles que, erroneamente, ainda acham que neste mundo vencem apenas aqueles que se atiram aos ossos do colega, quais selvagens domesticados, querem fazer-nos pequenos. Retirar-nos a beleza da nossa pequenez, da noção da nossa pequenez ao lado de um universo enorme. Não é vergonha, é um facto. E também não é vergonha abraçar a nossa pequenez, no silêncio, de quando em vez. Dizer ao ego: sossega. Dizer ao ego: deixa-me respirar. Dizer ao ego: deixa-me estar em paz, deixa-me olhar, deixa-me sentir a brisa e ouvir o silêncio. Deixa-me sonhar nas palavras e com as palavras.

Faz um tempo que me lembro de maldizer as palavras ainda que as amando. – Aquela relação de amor/ódio que exalava a frustração imensa que é uma palavra doer. Doer quando é ouvida, doer anos depois ainda. Doer até quando é dita. Hoje amo-as ainda mais pela forma como elas magoam – a mágoa é inerente a esta experiência humana. A mágoa é o lobo negro a mostrar-nos a luz do lobo alvo. E a verdade, caro leitor, é que a beleza não está apenas na luz mas na forma como balançamos trevas e luz e continuamos a olhar em redor e a sorrir.

A beleza está na forma como fazemos a paz em nós, está no processo da pacificidade própria. Na compreensão do milagre que é tudo estar conectado ainda que não o consigamos ver porque somos distraídos. – E o mundo pede-nos que não o estejamos. O mundo pede-nos silêncio e pupilas dilatadas, e baques no peito, e socos no estômago e compreensões cruas. O mundo pede-nos, acima de tudo, calma.

Um momento para se ser ainda sonhador, ainda sonho. Com o mundo, para o mundo, com as palavras, pelas palavras. O mundo pede-nos a calma para descobrirmos que o mundo ainda tem milagres e maravilhas e magia á nossa espera.