18 Março 2018      11:20

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A Morte De Um Apicultor – um livro.

Ler a obra-prima de Gustafsson é um privilégio.

Desde logo pelo título. Principiando pelo português, é claro. Conciso, estético, qual poesia distorcida a remeter para a dureza do inequívoco.

E como soa no original sueco (?) – passo seguinte lógico, e temível. Qualquer um que já tenha tentado procurar a harmonia da língua original, por exemplo, nos títulos dos filmes de Bergman, bateu certamente nessa parede intransponível que é a língua sueca (que são as línguas nórdicas). Quanto à busca pelo tal título que irá perdurar na nossa mente disponível, enfim, acabamos por o ir procurar na língua inglesa, que tem a vantagem de parecer sempre natural.

Neste caso, o caminho não foi diferente: En Biodlares Dod - Death of a Beekeeper. Também não! Afinal, também não. Caminho semelhante a tantos outros, mas de resultado distinto. Prevalece o título em português. Como naquele outro, filme de Bergman para não variar, em que do sueco (Viskningar Och Rop) se fez Cries and Whispers, e parecia insuperável; depois bastou traduzir literalmente: Lágrimas e Suspiros. O mais belo dos títulos de filmes em português.

A Morte de um Apicultor.

Não é um livro sobre a morte, pois sobre a morte não há nada a dizer, não passa de uma indignidade provocada pelas circunstâncias ou por deus (e, nesta hipótese, tão só uma dupla-indignidade). Há uma morte, que é o fim de uma História. Uma morte construída também na dor e na perda física (e se o Homem fosse criação divina, a morte depois de um caminho de sofrimento não seria sequer uma múltipla indignidade, não, um deus que permitisse à sua criação morrer no sofrimento não passaria de uma monstruosidade, mesmo se indestronável, mesmo se quase-todo poderoso; se pleno, apenas na crueldade; não mereceria um único seguidor).

Então se não é um livro sobre a morte, só pode ser sobre a vida. E se cada morte encerra em si mesma o fim de uma História, então cada vida é uma História – cujo fim é, para todos os efeitos, para o que importa, o fim da História. Cada morte, devidamente absorvida, devia ter, por assim dizer, um efeito absoluto; com essa morte (qualquer morte) viria o fim da Vida em maiúsculas. Para os sobreviventes nada restaria, afogados num grau de insuportabilidade para lá das suas qualidades humanas. Escapamos apenas porque nos distanciamos. E a maior parte escapa, como se sabe. Mas não da irredutibilidade da morte, ainda que lá longe.

Gustafsson, bom entendedor, tenta o impossível: o percurso (vívido, sem concessões, sem álibi) para uma morte que se aproxima a passos largos, tornado digno pela consciência solitária do seu protagonista. Homem tão consciente de si, do seu fracasso congénito, firme perante o mistério do seu estado, que recusará sempre usar como álibi (pois logo que a recebe, decide queimar a carta do hospital com o resultado dos exames), mesmo quando a dado momento é assaltado por uma dor tão forte que, de acordo com o próprio, está para lá da condição humana.

Para o leitor, esta híper-exposição interior é também caminho, caminho para o que podemos apelidar de estado de graça. O que por uma vez não fica mal. Tão próximos da fonte de calor que nos deveríamos queimar de imediato. E, no entanto, tal não acontece, e nem sequer nos espanta. Enfim, a possibilidade de olhar com clareza para a perda absoluta e sobreviver sem vir a carregar um peso excessivo, conscientes, mas serenos, eis a dádiva de Lars Gustafsson e do seu apicultor moribundo.

Mil milhões de vezes mais proveitoso que qualquer excerto de qualquer texto supostamente deífico. Alguns homens merecem esse crédito, como Gustafsson, ou James Baldwin, ou Primo Levi. Todos, como se diz por aí, demasiado humanos para que possam ser realmente humanos, com a enorme vantagem de nunca ninguém os ter confundido com deuses.

 

Imagem de deusmelivro.com