12 Janeiro 2019      12:39

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II. Momentos após o início

Amaro continuava sentado naquela cama que o aprisionava e fazia com que se contorcesse de forma vulnerável sem que conseguisse que o seu corpo respondesse ao apelo que a mente fazia.

Quando perdemos o domínio do corpo, a mente tenta dar-lhe ordens em vão. Amaro, por todas as razões que conheço, tinha perdido o domínio do corpo. Instrumentalizava-o ainda, ligeiramente, quando se mexia. Nada era como antes, nada é como no dia anterior. Não filosofemos.

Nenhuma das análises clínicas que Amaro fizera, regularmente, denunciava que o seu corpo e a sua mente fossem algo separado. Tudo funciona em harmonia porque se combina, porque a natureza é algo perfeito que nos surpreende. Amaro conhecia a natureza e o seu corpo em pormenor. Aprendera tudo sobre eles na universidade.

Agora, naquele quarto daquela pensão, em lugar que desconhecem ainda, aprendera tudo sobre as paredes, sobre os quartos e cada vez mais, sobre si.

Conseguiu levantar-se. Por momentos, o peso que se abatia sobre a sua cabeça tornara-se mais leve e ele conseguiu sair da cama.

A sua pele cheirava a cigarros e a álcool. O cheiro emanado era impossível de suportar a qualquer ser que dele se aproximasse. Amaro não sentia. Tinha-se tornado imune ao cheiro imundo.

Era um homem de meia idade e parecia ter o dobro da sua idade. Não caminhava com a leveza que assiste a um homem saudável. As horas que passara na cama despertaram-lhe a ciática e não o deixavam caminhar. As dores eram absurdas e a mistura dos analgésicos com o álcool faziam dele um alvo fácil a alucinações e deterioração física.

Via aquela que tinha sido a sua mulher. Creio que já vos disse, na semana passada, que o casamento tinha acabado. Acabara e muito mal. Contarei os pormenores. Não agora, que nem Amaro nem vós estais preparados para receber tão descrição gráfica do processo e seu culminar.

Contarei, a seu tempo. Tudo tem o seu tempo. Haveis reparado que todavia não utilizei o discurso direto. Não. De facto, até este momento, Amaro nada disse. Abriu a boca apenas para alguns gemidos, de dor. Os de prazer há muito que não os tinha, só ocasionalmente quando visitava o bordel da cidade que ainda não revelei. Ao narrador permite-se ocultar e revelar factos. Não apresentei muitos até ao momento. O facto gira em torno de Amaro, primeiro nome Marcelino, que está enclausurado, em termos metafóricos, numa pensão, numa cidade qualquer, e se encontra num estado de degradação humana que, fora algo surpreendente, será quase irreversível. Eu sei e Amaro sabe. Ambos sabemos. Você saberá.

Amaro caminhou até à casa de banho. Estava dentro do quarto porque pagava mais para ter esse luxo. Fazia-o também porque não queria passar pela humilhação de partilhar um local tão privado como uma casa de banho com estranhos, atendendo ao estado em que se encontrava.

A imagem da ex-mulher perseguia-o, mais intensamente quando estava inundado de analgésicos e álcool. Parecia que falava com ele e estava na sua frente. Parecia que falavam calmamente, sobre o dia a dia. Os olhos dela brilhavam e os der enterneciam-se a olhar os olhos dela.

Os dele eram negros. Os dela eram azuis.

Muitos anos antes ambos se incendiaram quando se refletiram pela primeira vez.

Amaro sempre tinha tido uma tez escura, quase mouro. Os olhos e os cabelos negros revestidos por uma pele clara que, no verão, depressa se tornava num castanho torrado, fizeram dele o homem mais exótico e mais desejado na Faculdade de Medicina. Aquela mulher, porém tinha sido a que o tinha agarrado. Talvez pela sua aparência quase escandinava, ainda que fosse alentejana.

Enquanto se aproximava da casa-de banho a imagem e a voz da mulher ecoavam em si.

Amaro ia urinar. Tinha já urinado durante a noite, deitado na cama, sem se aperceber. Sonhara que o fazia junto ao belo riacho, livremente, e isso foi o suficiente para que se urinasse durante o sono. Os lençóis seriam mudados, o fraco pijama seria lavado e o colchão continuaria imundo e com as manchas de xixi, e os ácaros e a baba que caia da boca, na almofada e no colchão. A imagem é forte. Lamento e que me desculpem os mais sensíveis. A situação é pior e agravou-se, enquanto falamos.

Fora daquele quarto há um mundo que não para e cujas ações geram consequências. E tudo acontecia enquanto descrevo Amaro e o seu casulo.

Passemos ao passado e ao mundo exterior, então.

(Continua)

 

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