A dignidade e a grandeza de um povo revelam-se no momento em que este olha para trás, para a sua história, e avalia, de forma realista e desprovida de moralismos ou atos de contrição, os seus erros e as suas virtudes.
Ao revisitar o passado, é fundamental contextualizar os feitos e as atrocidades cometidas pelos nossos antepassados no seu devido tempo e lugar, adotando uma perspetiva sóbria e ponderada.
No dia 16 de dezembro de 1972, o exército português executou, na província de Tete, em Moçambique, a chamada Operação Marosca.
Numa área conhecida como o triângulo de Wiriamu—que englobava as aldeias de Wiriamu, Chaworha, Juawu, Djemusse e Riachu—soldados portugueses massacraram, de forma bárbara, os habitantes locais, acusando-os de auxiliar a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO).
Segundo o jornalista britânico Peter Pringle, que revelou o massacre ao mundo com base na denúncia do padre Adrian Hastings, "os soldados reuniram os habitantes de Wiriamu, incluindo mulheres e crianças, na praça central da aldeia, ordenando-lhes que batessem palmas e cantassem para se despedirem da vida. Em seguida, abriram fogo".
A denúncia do massacre só se tornou pública graças à coragem de missionários ingleses que atuavam na região de Tete. Em 10 de julho de 1973, o jornal The London Times publicou um artigo com o título de capa: "Massacre português denunciado por padres".
O relato era chocante: "No final do dia, perto de 400 aldeões tinham sido mortos, e os seus corpos eram lentamente consumidos pelas chamas em piras funerárias ateadas pelos soldados com o capim que cobria as palhotas.
" Em resposta, as autoridades portuguesas negaram prontamente as acusações, classificando-as como uma tentativa de denegrir a imagem de Portugal no plano internacional.
Contudo, após o 25 de Abril de 1974, com a queda da ditadura, os arquivos foram abertos, confirmando que o Estado português tinha conhecimento do massacre e que o episódio fora, inclusive, discutido nas mais altas esferas do regime.
E surge a questão: Porquê falar de Wiriamu hoje?
É essencial recordar Wiriamu porque a sua história não termina com a última vida ceifada naquele fatídico dia. Continua viva nas suas consequências e nas lições que ainda temos por aprender.
Wiriamus continuam a acontecer em várias partes do mundo, mesmo mais de 50 anos após aquele dia. A memória deste massacre lembra-nos que a barbárie não pertence apenas ao passado — ela persiste sempre que a dignidade humana é violada em nome do poder, da ideologia ou da religião.
Além disso, Wiriamu evidencia a complexidade da história. Poucos anos após o massacre, soldados portugueses que participaram na repressão colonial estavam a ajudar a libertar Portugal de uma ditadura de 48 anos, num paradoxo difícil de ignorar.
Em 2008, durante uma visita a Maputo, o então Presidente da República, Cavaco Silva, ao ser questionado sobre a possibilidade de Portugal reconhecer o que aconteceu naquele dia, afirmou: "Os povos fazem história todos os dias, com todos os defeitos e virtudes que ela possa ter. No que diz respeito à história, procuro identificar os factos positivos, pois, se insistirmos em olhar para trás, para o passado, perdemos o futuro."
Nada mais errado. Olhar para o passado com clareza e verdade é a única forma de construir um futuro sólido. Ignorar ou distorcer a história apenas perpetua mitos que obscurecem a compreensão do presente e comprometem o futuro.
Foi apenas em 2022 que o Primeiro-ministro António Costa reconheceu formalmente, em nome do Estado português, a responsabilidade no massacre de Wiriamu. Numa declaração histórica, afirmou: "Não posso deixar de evocar e de me curvar perante a memória das vítimas do massacre de Wiriamu, um ato indesculpável que desonra a nossa História.
" Este gesto, embora significativo, ficou aquém do necessário para uma verdadeira reparação histórica da memória do colonialismo português. O reconhecimento limitou-se ao massacre de Wiriamu, ignorando outros episódios igualmente brutais cometidos durante o período colonial que permanecem sem uma posição e um reconhecimento oficial.
Entre esses episódios, destacam-se o massacre de Batepá (1953), em São Tomé e Príncipe, o massacre de Pindjiguiti (1959), na Guiné-Bissau, e o massacre de Mueda (1960), em Moçambique – todos eles expressões de violência colonial que continuam à espera de uma responsabilização pública e de um gesto claro de memória e justiça.
É imperioso que as canções que as mulheres e crianças de Wiriamu entoaram naquele dia, pouco antes de perderem a vida, nunca mais sejam o prelúdio de um ato bárbaro, mas sim um hino de esperança e de memória viva, lembrando-nos do valor da dignidade humana.
A melodia de Wiriamu deve permanecer como um apelo universal e intemporal para que atrocidades como aquela tenham o seu fim — seja na Palestina ou na Ucrânia, no Afeganistão ou em Myanmar.
Recordar Wiriamu é mais do que revisitar o passado — é um compromisso com o futuro. É afirmar que, em qualquer lugar do mundo, a memória dos inocentes não será silenciada e que a busca pela justiça, pela dignidade e pela paz será sempre um dever coletivo e inadiável.