3 Fevereiro 2019      10:20

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Man Of The West – parte 2

Man Of The West (1958), de Anthony Mann

Gary Cooper foi uma das figuras mais ambíguas do star system de Hollywood. Por um lado, na aparência, simples de definir como modelo: era um conservador de ar imperturbável, daqueles que facilmente se identificam com uma das duas facções da Hollywood de então (enfim, da América que dura até aos dias de hoje). No entanto, ao contrário de John Wayne, não suspendia o pensamento perante a habitual elasticidade das ocorrências do dia-a-dia, nem sempre fáceis de delimitar de acordo com modelos primários. Forma de estar corroborada por acções que não podem deixar de gerar simpatia. Sim, testemunhou perante a monstruosa Comissão de Actividades Antiamericanas, idealizada por Joseph McCarthy (que felizmente não morreu de velho), identificando-se como anticomunista primário e expondo certas inquietações ante certos comportamentos à sua volta; no entanto, nunca deu nomes e quando a mesma comissão tratou de excluir do mundo do cinema Carl Foreman, o argumentista de um dos grandes sucessos da carreira de Cooper, High Noon (1952) – e enunciemos que é por aqui que a excepção chega a plural –, este defendeu-o com unhas e dentes, arriscando a ser colocado na infame Lista Negra, destinada de igual modo aos que questionavam as determinações do merdoso senador do Wisconsin e companhia, e por esse motivo menos justos. Não vendeu colegas e não deixou cair um amigo, portanto. Uma curiosidade: dizem as más-línguas que foi John Wayne em pessoa quem o ameaçou com a Lista Negra. Ah, bravo Duke – mui digna representação da coragem dos valentes. Em código: FAKIU!

Fica, assim, claro pelo exemplo precedente que Gary Cooper reproduzia no cinema e na vida (e respectivas intersecções) o âmago do Homem do Oeste. Homem que não se anunciava nem deixava que o anunciassem como providencial, mas que não virava as costas à luta. Homem que, bem ou mal, estava ali e entre fugir e lutar, escolhia lutar. Homem consciente da ambiguidade do seu estado. Homem que não tinha verdadeiramente para onde ir, mas sabia que em algum lado era esperado – como homem, não como herói, que fique claro. High Noon foi a afirmação desse homem; Man of The West, a sua síntese.

 

Logo nos primeiros instantes de Man of the West percebemos que é, em certa medida, um homem fora do Tempo. Ou melhor, que vive num Tempo-Modo próprio, digamos que, solto no que concerne à relação entre o Tempo e o seu Espírito. Considera o comboio, que vê pela primeira vez, a coisa mais feia que alguma vez viu. Quando um daqueles farsolas que se topam a milhas se mete com ele, não o afasta, dá-lhe troco e sorri. Quando uma mulher bonita passa por ele, mal olha para ela, mas sabemo-lo bem, mirou-a de cima a baixo – nesse momento, olhar radiográfico, na diagonal e tendencialmente sério. O liberal e o conservador misturam-se num corpo-mente que não pertence a nenhum ideal. Quando muito, não é imune às circunstâncias do momento – do sentido do momento, quer dizer.

Pouco saberemos do presente desse homem, apenas que alcançou a dignidade no esquecimento, na naturalidade e na pertença – binómio: família + comunidade. Posto isto, nada há a acrescentar.

É no confronto com o passado que o filme concentra a sua força. Efeito de ricochete de uma vida com a sua sombra, pois não se vive apenas uma vida se se tiver vivido muito tempo. Não no cinema.

O percurso é linear; o olhar, interior:

O Homem do Oeste entra num comboio com uma missão (contratar uma professora); o comboio é assaltado por um bando e o Homem do Oeste, vítima das circunstâncias, fica pelo caminho, acompanhado quer pela mulher, quer pelo intrujão que vimos no princípio do filme; os três procuram refúgio numa cabana, onde, por azar, se encontram os assaltantes do comboio; o bando é, afinal, o antigo bando do Homem do Oeste, um fora-da-lei entretanto regenerado – para cúmulo, os antigos companheiros são seus familiares; o Homem do Oeste numa encruzilhada: ou elimina os que já foram seus e abdica do valor primígeno (o sangue) ou abdica do renascimento (família escolhida).

A consequência não é simplesmente uma reacção:

Sabemos onde isto vai parar (e os que não sabem facilmente intuem), mas de pouco importa. A narrativa é clássica, vai para onde tem de ir. O mistério, se existe um, é risível. O que está em causa, assim parece, é todo um modelo assente na negociação permanente entre níveis aceitáveis de perda.

Mas voltemos um pouco atrás. Alguém escreveu que a impossibilidade da “verdadeira vida” (a plenitude, por assim dizer) leva o ser sensível consciente do facto para os caminhos do absurdo. Declaração, convenhamos, difícil de contrariar se levada a sério. Se tomarmos a “verdadeira vida” como um objectivo viável, a impossibilidade da sua concretização degeneraria inevitavelmente numa sensação de perda sem fim à vista; nesses termos, até a morte seria bem-vinda – melhor, só a morte seria bem-vinda. No entanto, enquanto seres sensíveis conscientes, uma das primeiras coisas que aprendemos é a não viver nos termos do absoluto; ou seja, a negociar. A vida…praticável implica que quem vive saiba estar e saiba agir de acordo com os meios disponíveis, esticando as hipóteses ao ritmo do possível e um pouco mais. Humildade que não se deve confundir com conformismo. A única transcendência imanente ao ser sensível é a aceitação, e não há maior acto de humildade que a diluição pelos níveis fundamentais da humanidade (a começar na sociabilização e no respeito pela comunidade e pelo compromisso assumido), a transcendência zen aplicada ao velho Oeste.

A individualidade responsável não culmina na excepção e o acto heróico não é uma caminhada para a diferenciação. O nosso herói, o Homem do Oeste abdica uma e outra vez, por outras palavras, assume a responsabilidade da escolha, e regressa para junto dos que elegeu como seus. Quando o voltarmos a ver, se o voltarmos a ver, é mais um entre muitos. Não se distinguindo dos demais; afinal, nenhum homem se distingue do herói.        

 

Imagem de sensesofcinema.com

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