Nada é mais estimulante que o inesperado. Mesmo se pouco, quase nada, nesta vida neste canto protegido da intempérie se discute nos termos de vida ou morte, certas coisas têm a virtude de nos levar a tomar posições não muito distantes da insanidade.
Virtude? Sim, sem dúvida. Seja como for, se merecem resposta veemente é precisamente por se terem tornado subitamente vitais; ainda que, vistas depois a uma certa distância, não pareçam assim tão importantes.
Uma destas noites, enquanto discutia com um amigo meu sobre TUDO, surgiu o nome de Roy O. Ponto fraco. Entrei em delírio e pus a canção (They Call You) Gigolette para assim fazer tese, julgando que a conjugação daquele hino para os deuses com os termos da discussão tornaria os meus argumentos irrefutáveis. Afinal, trata-se de uma canção que começa no topo e sobe seis vezes de tom, todas elas (as subidas) em teoria, impossíveis de concretizar, pois a tender para um infinito impossível de nomear, quanto mais de atingir.
Não foi assim; esse amigo, como se imbuído de uma vontade assassina, reduziu o colossal ao seguinte: Isto está um bocado datado.
Como assim? – Tentei não arrastar a voz, mas faltou-me o ar e o assim saiu serrilhado. As orquestrações – estás a ver – ele faz apenas o que já se fazia, mas melhor… Não estava a ver, e mesmo se estivesse ia dar ao mesmo. Certas coisas recusam-se por definição. Exaltei-me. Exaltámo-nos. Sem maiores consequências, por esforço mútuo. Contudo, ficou a marca.
O argumento é inaceitável! Mesmo se com algum suporte analítico na sequência, é por natureza superficial. Clockwork Orange, o filme de Kubrick, também está esteticamente muito próximo dos vícios da época em que foi produzido, e continua perfeito. Tal como Easy Rider, de Dennis Hopper. E os calções do Maradona também eram curtos demais, mas quanto ao potencial daquele pé esquerdo, enfim, nem com o auxílio detoda a tecnologia de ponta em espectroscopia se conseguiria vislumbrar o seu limite.
Roy O não era sequer um fruto da época. Não fazia o que outros já faziam, melhor.
Não – Antes fazia o que os outros já tinham deixado de fazer, sem necessitar de qualquer qualificação a seguir.
Talvez conhecesse o Tempo melhor do que qualquer outro. Talvez tenha experienciado o que Einstein apenas conseguiu teorizar; notável acidente. Roy O como o primeiro (e único – por onde andam os outros?) Viajante no Tempo; para a frente e para trás no seu contexto, o arco da sua existência. No que de resto acredito firmemente.
E, assim sendo, o que viu? Viu a morte daqueles que amava. Viu a morte da mulher, esmagada contra um camião. Viu dois filhos consumidos pelas chamas. Viu ainda o instante da sua morte, tendo regressado no milésimo de segundo anterior, mas de perfeita consciência quanto ao fim que o esperava; com data e hora marcada. De regresso, não sobreveio o alívio. Que alívio, afinal?
A partir daí passou a viver como se vivem os pesadelos, no rebordo da percepção, erguendo barreiras, simulações funcionais. Como se a viver num estado para-temporal, aquém ou além da seta do tempo, na quinta dimensão, numa condição de estabilidade, fixidez, em relação ao futuro.
Veja-se como se vestia, de preto e sempre de óculos escuros, vestes robóticas com o objectivo de fixar para sempre a sua imagem (como as vestes do Terminator, de Schwarzenegger). Os óculos a cobrir os pontos onde os outros podem visualizar o tempo que vai passando, os olhos – pontos de pressão, onde se expressa a personalidade e vinca o envelhecimento.
Claro que para a sua música, Roy O, nessa circunstância, teria necessariamente de ir buscar referências ao passado, onde o que era (não que deixe de o ser) sombrio e terrível se pode desvanecer, atenuar, sob a capa da nostalgia.
Identificadas as coordenadas, pode-se finalmente entender o porquê de certas escolhas. Roy O vivia na dor e era um génio. Quanto ao restante, das épocas e dos seus vícios, de que nos pode importar realmente, se já estamos para lá do firmamento.
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