20 Outubro 2018      11:19

Está aqui

Leviatã

Há muitos, muitos, anos atrás, quando ainda não havia escrita, escrevia-se com os dedos nas paredes das grutas, coisas como animais e desenhos, pessoas, nuvens, sois. Enfim, escrevia-se só aquilo que se via. Não se sonhava muito nessa altura. As pessoas que sonhavam à noite, tinham mais pesadelos e os sonhos maus eram sobre objetos, monstros ou coisas correntes. Ninguém sonhava com filmes. Na época não havia filmes nem cinema. Nem livros havia. Já tinha dito acima que não havia escrita.

No rio, numa terra muito distante, vivia uma família de pescadores. Pescavam sete dias na semana, sem um dia de descanso. Era uma exploração que o patriarca fazia da família toda. Mas ninguém se importava pois não conheciam outro afazer ou outra coisa. Serve a presente introdução para contar ao leitor que viviam sem preocupações e não sonhavam ou, quando sonhavam, era com pedras e nuvens e sois.

O pai, chamemos-lhe de A, casado com B (não era casado por registo nem tinha feito a transcrição do casamento para Portugal), tinham como filhos C, D, E e F. Uma família numerosa, o que, entre nós, dificultava a pescaria no rio, pela quantidade de peixe que ia escasseando. Quando se acabar o peixe, mudamos de localidade. Agarramos nas peles e fugimos para um lugar onde haja tâmaras e possamos viver em paz. Apanharemos as tâmaras, atacamos as tamareiras e vendemos as mesmas sem caroço e depois de secas. Arranjamos um camelo e vamos todos passear aos fins-de-semana. Pelo menos, não trabalhamos que nem uns pescadores, de cana na mão.

Mas, apesar de todas as queixas, a vida até lhes corria mais ou menos bem. A, falava com B e B dava ordens a C, D, E e F. Sentados de cana na mão, filosofavam sobre as coisas da vida e do universo, daquele que conheciam. Não tinham ainda ganhado a capacidade de ir além do visível. Isso só aconteceria com o nascimento do primeiro escritor. Seria, por um mero acaso, o filho deles, ainda por nascer, o G, gémeo com o H. Só o G saiu escritor. Já nasceu no deserto e só ganhou veia para a escrita com a história aterradora que vos vou contar a seguir.

Era um sábado, dia de descanso e toda a família estava a trabalhar, ao lado do rio, sentados, cana na mão. Logo, ao fim de meras 3 horas sem um bulir de vento e sem que, nas águas, se agitasse fosse o que fosse. A pasmaceira era grande. O tédio havia-se instalado. O único som que se ouvia eram as barrigas de cada membro da família, patriarca, matriarca e prole, a roer-se com fome. Durante uma semana, não haviam pescado nada. Aquilo parecia castigo por trabalharem sem descanso.

A olhava para B e B retorquia o olhar. C D E F não diziam nada. De repente, e é aqui que o leitor saltaria da cadeira com o susto. Se não saltou devia. Fracasso meu que não consegui o efeito pretendido. Bem, mas passemos à frente. A cana do pai começou a abanar, passou para a da mãe e depois passou por todas as dos filhos e fez-se de novo silêncio. Os engodos tinham desaparecido e os anzois tinham ido embora também. Olharam todos uns para os outros, em pânico. Nunca tinham sentido medo. Nunca se tinham assustado a sério. Os mais pequenos choravam. O pai acalmava-os e dizia-lhes que aquilo seria o maior peixe da vida deles e daria para alimentar duas famílias, a deles e a dos vizinhos do outro lado da margem. Esses eram a família 1, 2, 3, 4 e 5. Lamento não conseguir inventar nomes para todos agora. O foco é no terrível acontecimento.

Esse, o temível, aconteceu logo a seguir. Ainda não tinha o pai acabado de sossegar a criança que chorava quando, do outro lado, uma monstruosa criatura, com cabeça de achigã, corpo de lula e tentáculos de choco se ergueu das águas e engoliu, de uma só vez 1, 2, 3, 4 e 5. Do lado de cá, A, B, C, D, E e F em total espanto e de boca aberta. Jogaram as canas e começaram a correr para o lado do deserto, com o pai a gritar com as crianças – Levantã, Levantã… e as crianças, no meio do susto, repetiam Leviatã, Leviatã… e assim, passou o monstruoso animal do rio a chamar-se Leviatã. A família dos números nunca mais se havia de ver. A família das letras foi viver para o deserto e aí nasceu o filho seguinte do alfabeto e esse, depois de ouvir o conto, vezes sem conta, aprendeu a escrever e contou, na pedra, essa história que chegou aos nossos dias.

Muitos anos mais tarde, um descendente seu, Herman Melville escreveria Moby Dick, sobre uma baleia branca. Não tem nada a ver mas ficou na família, dizem…

 

 

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