10 Julho 2022      20:31

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A lenda dos quatro olhos II

Depois dos latidos dos cães, três, a festa começou. O moço e a moça tinham ido os dois à festa, como sempre tinham ido desde que se conheciam por gente. Deviam ter agora os seus catorze anos. Eram da mesma idade. Aliás, tinham nascido os dois no mesmo dia e à mesma hora. Coincidência ou não, o destino marcava os dois de uma forma nunca igual. Ele nasceu no cerro, do lado da umbria e ela nasceu do outro lado, o da soalheira. Ela tinha nome de flor e ele de flor tinha.

Já se tinham visto tantas vezes na festa, sentados na igreja, um na coluna da esquerda, o outro no lado direito.

Naqueles dias de festa iam com o melhor fato e o melhor vestido que só saía do guarda-fatos para estas situações. Ela calçava meias brancas rendadas e sapatinhos da mesma cor. Vestia um vestido branco folhado, como se fosse aquele o dia da sua primeira comunhão. Ele, tinha calças de tirilene pretas, botas cardeadas e uma camisa também ela branca. O seu cabelo estava impecavelmente penteado, seguro por brilhantina. Por ser dia de celebração, era assim que tinha de ser. As famílias acompanhavam-nos, eram conhecidas, sendo até que diz-se que seriam parentes afastados.

Aos catorze anos, a puberdade mostrava-se já no bigode fraquinho dele, no corpo dela e nos olhares que, por uma razão química, talvez algo ligada a feromonas, os aproximou e fez com que os dois olhos de cada um não mais se desligassem dos outros, fazendo com que os quatro passassem a olhar tudo e todas as coisas da mesma forma, para o resto da vida.

Durante um ano, entre os catorze e os quinze, não se olhariam de perto os olhos. Mesmo à distância, continuavam a ver-se.

A frequência a partir dos quinze passou a ser mais frequente. Ele começou a fazer-lhe a corte. As famílias começaram a negociar os termos do casamento, por volta dos dezoito. Não foi um processo difícil. Envolveu umas cabeça de gado e uns pedaços de fazenda, e no fim deu em casamento, tal como era a vontade de todos.

O matrimónio foi na mesma igreja onde os olhos se tinham cruzado pela primeira vez, depois do latir do cão. Como já era tradição, ela vestiu-se de branco e ele, calças de fazenda e sapatos finos que tinha comprado no mercado de Messines. A camisa era branca e desta vez acompanhava-se de uma gravata. Foi um dia feliz, que aproximaria os quatros olhos por muitos anos, até que a morte os separaria.

Arranjaram uma casinha simples entre a umbria e a soalheira, uma casinha que cresceria com os anos, tal como o número de olhos que de dentro da casa olhavam para fora, pela janela e pelo postigo da casa.

Porém, os olhos cansam-se com o passar dos anos, deixam de ver como antes e tornam-se mais vulneráveis. As lágrimas passam a ser mais frequentes e um dia, os olhos fecham-se e não se voltam a abrir.

Isto acontece a todos e eles não foram exceção. Os seus olhos, porém, fechar-se-iam, no mesmo dia e à mesma hora, olhando-se fixamente, entre lágrimas e cansaço, esperando que os outros se fechassem. E, ao mesmo tempo, as pálpebras perderam a força e não mais se abriram.