7 Novembro 2020      10:46

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Isto é uma América?

Desde pequeno que aprendi a admirar os Estados Unidos.

A doutrina emanada de Hollywood terá sido uma grande culpada. Quando era pequeno, tal como a maioria das crianças à época, preferia os cowboys aos índios, preferia os americanos aos russos, aos chineses, a quaisquer outros alegadamente “bad guys”. Os EUA chegaram à lua, dominavam o espaço e quem não quis viver como em “Beverly Hills 90210”?

Entre outros pensamentos pró-americanos que todos nós, consciente ou inconscientemente, fomos criando, quem é que pôde continuar a suportar o coitado do Dolph Lundgren, após ter feito o papel do boxeur russo, face ao empático (embora inexpressivo) Sylvester Stallone, em Rocky IV?

Os Estados Unidos criaram em todos nós a ideia de serem os mais fortes, o país ideal, o país da Liberdade, onde tudo é possível. Criaram o sonho americano que todos queriam ter como seu. O “self-made man”. A prosperidade exemplar que se sonhou para Europa após o Plano Marshal e com a criação da União Europeia; a prosperidade que deu azo ao dito popular “isto é uma América, não?” quando um pedido vai além do espectável e só realizável pela mão de uns poucos ou que revela grande abastança.

E a verdade é que o foi durante muitos anos. Durante décadas, foi quase o exemplo de país, o fiel da balança, uma fação necessária ao equilíbrio de forças mundial. E ainda é necessário.

O que não é necessário é que sejam os EUA a criar esse desequilíbrio.

Porque é que as eleições norte-americanas despertaram, agora, tanto interesse em todos?

Fruto de uma gestão mais irresponsável, foram criadas quezílias e clima de pré-guerras quase por capricho. Gerir um país, com armamento nuclear à séria, com base em birras e por parte de um presidente que desrespeita tudo e todos, cuja própria opinião é até superior à Ciência, é um risco sério para os EUA e para todo o mundo.

Dizem alguns: “mas para que é que me interessa o que eles para lá fazem?”, “as eleições são deles. Não temos nada a ver com isso!”

Se estas afirmações são verdadeiras de um ponto de vista minimalista, de um ponto de vista que olha para eleições unicamente como um ato isolado de um país soberano, são irresponsáveis e irrefletidas, de um ponto de vista macro, pois tudo o que acontece nos EUA tem reflexo na Europa. Caso não tenham noção disso relembrem o 11 de setembro ou a última crise económica da banca. No mundo de hoje, nada é isolado, muito menos o que acontece em países como EUA, China ou Rússia, ou outras grandes potências europeias. A guerra fria nunca acabou, só arrefeceu.

O que os EUA não podem, é ser geridos pelo Twitter. Os EUA não podem, é ser geridos por pessoas que que incitam à violência. Não podem ser geridos por pessoas que têm, ou tiveram, Steve Banon como conselheiro, alguém que veio pedir a decapitação do especialista Covid Dr. Faucci e do diretor do FBI. Não podem ser geridos por pessoas que negam as alterações climáticas, pessoas que rasgam os acordos com instituições e organizações mundiais; pessoas que começaram semanas antes das eleições a referir que aconteceriam fraudes e que até hoje ainda não as provou; pessoas que pedem que não se contem todos os votos. Os EUA não podem ser geridos por caprichos. São um país importante demais para se prestar a este papel triste de desrespeito pela instituição democrática do voto. Quem acredita na Democracia, quem é democrata (não me refiro ao partido) não pode nunca alegar fraude e colocar em causa todo um sistema com a leviandade com que foi e é feito.

As coisas tomaram proporções tais que até o senador republicano Mitt Romney – candidato do Partido Republicano à presidência dos Estados Unidos em 2012 - criticou Trump, considerando que as suas exaustivamente repetidas declarações, sobre alegadas fraudes eleitorais nas eleições presidenciais, minam as instituições e agravam as tensões. Acrescenta que tem o direito de pedir recontagem de votos, mas não de alegar fraude sem provas concretas. O mesmo caminho de Romney seguiram outros senadores dos principais estados visados pelas acusações.

Esta novela ridiculariza o país e as suas instâncias e o mundo precisa dos EUA fortes e estáveis, democrático e onde todos cabem.

No primeiro episódio da série “The Newsroom”, de Aaron Sorkin, Will McAvoy – interpretado por Jeff Daniels – foi questionado para responder porque é que os EUA eram o melhor país do mundo. Respondeu dizendo que não o eram, para espanto geral. Enumera depois uma longa lista de dados para corroborar a sua opinião, compara com outros países e desmonta falsas ideias criadas.  Termina dizendo que já o foram; fala das origens, de tudo o que os EUA fizeram, dos grandes Homens, e diz o caminho para o voltar a ser: “O primeiro passo para resolver qualquer problema é reconhecer que há um. A América já não é o maior país do mundo.” (“First step in solving any problem is recognizing there is one. America is not the greatest country in the world anymore.”).

Espero que o voltem a ser. O mundo precisa dos Estados Unidos. Dos verdadeiros, aqueles que foram criados “pelo povo, para o povo”. É preciso que o “Great again” seja muito mais que um slogan, mas não a qualquer custo.

 

Imagem de Evan Vucci, da Associated Press, em redd.it