21 Outubro 2018      08:36

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Ian e o (supremo) desconforto

Nem sempre uma ferida profunda deixa grande marca à superfície. À distância, tal…sugestão (insinuação talvez seja melhor palavra) parece adequar-se perfeitamente ao suicídio de Ian Curtis. Vocalista e letrista dos Joy Division, banda rock que alguns arriscaram delimitar (a Wikipédia arruma-os numa espécie de dupla prateleira, no post-punkgothic rock).

A morte aos 23 anos é por natureza um acontecimento tocante – e, evidentemente, os lamentos sucederam-se. Esta é uma espécie de tolos, não de bárbaros. Não nestes termos, pois sofremos por aqueles que deixou e o encontraram suspenso e de olhar vítreo na cozinha, a mulher e o filho pequeno, e sabemos reconhecer o génio quando é manifesto. Contudo, morto o génio, é obrigatório encontrar um sucessor. Já vimos isto acontecer inúmeras vezes…

Entretanto banda liquefez-se, e os que restaram tornaram-se noutra coisa. Sucesso não lhes faltou. Faz-vos lembrar algo? Sim, Pink Floyd – nome que tinha tudo e para o nada se deixou cair; também tornados noutra coisa qualquer com a partida forçada de Syd Barrett. Os restantes Joy Division tiveram esse mérito: tendo escolhido outro caminho, perceberam que o nome já não lhes pertencia. Converteram-se em New Order a partir de então. Ordem, na aparência, mais sedutora (porque a tender para a luz) que a antiga Divisão, apesar da denominação desta. Raras vezes um nome foi armadilha mais eficaz, pressupondo o incauto ouvinte como presa disponível (que não pode deixar de ser).

Armadilha? Sim, mas isto não diz nem metade, pois em certos logros caímos com gosto. A Divisão de Ian Curtis foi um espaço de absoluta desolação, algo que já intuíamos, tendo, no entanto, avançado para o seu vórtice com absoluta receptividade. E como funciona? Atente-se nas palavras certeiras de François Truffaut: “Existe na própria ideia do espectáculo uma promessa de prazer, uma ideia de exaltação que contradiz o movimento da vida, isto é, a rampa descendente, degradação, envelhecimento e morte. Resumindo, por natureza, o espectáculo é algo que sobe, enquanto a vida desce, e, se aceitarmos esta visão das coisas, então o espectáculo, ao contrário do jornalismo, cumpre uma missão de mentira; mesmo assim, continua a valer o seguinte: os maiores do espectáculo são aqueles que conseguem não cair na mentira e que fazem o público aceitar a sua verdade, sem todavia ferir a lei ascendente do espectáculo. Estes fazem que se aceite ao mesmo tempo a sua verdade e a sua loucura particular a auditórios com uma loucura diversificada.

Por outras palavras, o espectáculo assenta numa integridade que está para lá da felicidade ou do sofrimento, ou de bem e do mal, já agora.

O sofrimento honesto, a vertigem do abismo ou a loucura fértil dão extraordinárias performances… O espectador, na já mencionada disponibilidade, e apesar de tudo a uma certa distância, não resiste – começa por não querer resistir, a programação genética prende-o então pelo braço, uma pequena agulha vinda sabe-se lá de onde atravessa-lhe a artéria hipersensível: um espasmo! – que tem de ser combatido; não durante muito tempo uma vez que a vontade está lá, não menos constitutiva; segue-se a libertação, e pode então o espectador contemplar a queda com o mínimo temor (a liberdade é transe e fervor antes de ser responsabilidade). 

Quanto ao suicídio de Ian, não é crível que o motivo tenha sido a paixão assolapada por uma jornalista belga bloqueada por um nobre sentimento de culpa e levada, desse modo, ao paroxismo como diz a lenda. A vida, às vezes, pura e simplesmente deixa de poder ser vivida.

 

Imagem de ksassets.timeincuk.net

 

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