16 Outubro 2021      09:37

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História de uma folha que se recusou a deixar a árvore caducifólia...

História de uma folha que se recusou a deixar a árvore caducifólia onde vivia e passou o inverno a tremer de frio, fruto da sua teimosia.

Estávamos em meados de outubro do presente ano quando, na distante província de Vermont, nos Estados Unidos da América, as folhas começaram a sucumbir ao ritmo do tempo, neste caso do outono. Nesta altura do ano, nestes lugares dos quais falamos, há uma gradual substituição de cores. O verde deixa-se superar pelo amarelo, pelo castanho-claro, pelo castanho escuro e por tantas outras tonalidades intermédias que constituem, a nosso ver, dos mais bonitos momentos criados pela natureza, nesta parte do globo.

Esta nossa opinião é partilhada por Foli, uma folha que nasceu, como tantas outras, numa árvore e nada mais conheceu senão o apego a essa árvore e esse modo de vida. A sua vida não era muito interessante. Aliás, não fazia nada a não ser estar agarrada à árvore, balançar ao sabor do vento, ser bicada por um pássaro ou outro, sentir na textura as gotas de água refrescante nos dias de calor e nunca pensar na filosofia das coisas.

Se as folhas falassem entre si, qual seria o tema da conversa? Talvez falassem sobre o céu azul, talvez julgassem as folhas das árvores em redor, comentando as propriedades físicas das folhas. Não. Parece-me que falariam sobre assuntos de uma profundidade filosófica só comparável aos escritos de Aristóteles ou Nietzche. Num discutiriam o animal social que visitava as zonas térreas das árvores em que viviam, sempre com medo que trouxessem consigo aquele apêndice com dentes aguçados que fazia barulho e que podia significar o fim da perenidade do tronco que as sustinha e alimentava. No outro discutiram, por certo, o vazio existencial e o niilismo que era a sua própria existência.

Certo dia, Foli começou a ver, lenta mas penosamente, as suas companheiras de toda uma vida a desprenderem-se, sem um mínimo de esforço para ficarem, do ramo onde tinham nascido e vivido até aí. Foli observava apenas os acontecimentos sem, até esse dia, racionalizar muito o que estaria a acontecer. Cada hora que passava saiam de junto de si cada vez mais pares suas e, todas elas, se deitavam a dormir um sono profundo no fundo daquela que tinha sido a sua casa, até que se transformavam em húmus. Porém, isto Foli não sabia nem nunca poderia entender porque era uma folha, e as folhas não pensam nem sentem. As folhas, tanto quanto sabemos, não tem sistema nervoso central. Talvez assim seja, mas Foli tinha. Era uma folha que sentia. Dotada de uma sensibilidade tamanha, recusou-se a adotar cores diferentes, saindo do seu verde natural para viver a efemeridade de ter várias cores e saltar de sensação em sensação sem verdadeiramente aproveitar nenhuma delas. Foli sabia que esse não era o caminho a seguir, pois vira já o destino das restantes folhas que passaram pelo mesmo caminho, rumo à eternidade do esquecimento.

Nesse momento, a nossa folha decidiu que não seguiria a ordem natural das coisas que as outras seguiam e, ciente da sua decisão, agarrou-se a todas as suas características originais, ao verde e à sua ligação umbilical ao ramo da árvore mãe onde nascera e com quem partilhava a linfa e o alimento quotidiano.

Passariam o mês de outubro e de novembro e Foli, completamente sozinha, continuava agarrada à árvore onde nascera. Vieram os dias de vento, chegaram os dias de chuva e frio, aos que seguiram os de neve gelada. A folha via-se sozinha, nada ao seu redor se assemelhava ao que conhecera. A única coisa que via eram os troncos cobertos de branco. Um manto tão alvo que fazia esquecer, por momentos, que sob o mesmo jaziam todas as suas iguais.

O inverno foi passando e a folha, em sofrimento absoluto, agarrava-se a uma ideia que, verdade seja dita, a faria sobreviver todos esses meses. Dolorosamente, num ambiente gélido e descaracterizado, Foli duvidava do seu esforço e do resultado desse esforço. Entre o primeiro raio de sol, quando o mesmo não era tapado pelas nuvens e o último desse dia, imaginava-se a dormir debaixo do manto puro onde descansavam as suas irmãs. Esse não era o seu destino.

Em março, já sem neve, começaram a surgir cada vez mais os raios de sol quotidiano e com ele, o manto branco fugiu, dando lugar a pequenos mas inúmeros rebentos de ervas verdes que transformavam o solo com a ajuda fértil das suas companheiras.

Nesse momento, Foli apercebeu-se que na sua árvore mãe nasciam novas folhas e que uma nova geração ocupava o lugar da antiga. Olhando para o chão, via toda uma nova realidade que só era possível pelo sacrifício das suas iguais.

Aí, percebeu que era a sua hora de libertar a árvore da sua presença e cumprir o seu propósito. Sem dor, despregou-se, olhando o céu azul pela última vez e, empurrada pelo vento caiu num lago de águas cristalinas, onde o azul se mantinha em reflexo. Absorvida pelas águas, amoleceu e a partir desse dia, repousou no fundo do lago, para sempre recordando que fora a única folha que conhecera duas gerações e que, sobreviveu ao frio, tentando ser a folha perene que nascera caduca.