3 Junho 2016      20:11

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OS HERÓIS E OS MÁRTIRES ESQUECIDOS

"MENOS ESTRANGEIRO"

Somos educados para que nossas emoções sejam facilmente acionadas por uma fórmula que combina sacrifício, resiliência, superação e conquista. O resultado desta combinação está tão imbrincado nas culturas ao redor do mundo, em especial na euroamericana que, para muitos de nós, ela seria a síntese da própria natureza humana.

Temos, portanto, uma inclinação pela tragédia. Valorizamos o sofrimento como condição para dispensarmos respeito e admiração pelos feitos alheios, sem percebermos que o culto da tragédia é, antes de nada, um mecanismo eficiente para a nossa dominação. A historiografia é um exemplo cabal de como isto se realiza.

Na escola, que História nos é ensinada? A História dos heróis e dos mártires. Se os primeiros são os vencedores, a quem passamos a dever os avanços nacionais e transnacionais, os segundos são os perdedores cujas derrotas têm caráter pedagógico, na medida em que exacerbam a presença do “mal” e nos mostram o caminho do “bem”.

São inúmeros os exemplos de uns e de outros, os quais são renovados a cada geração. Eles servem aos mais distintos propósitos, não estando restritos aos grupos que ocupam posições de poder. O que sabemos sobre os nossos passados gira em torno das histórias destas individualidades, verdadeiros super-homens, ao redor dos quais orbitam muitas de nossas crenças e tradições.

Sendo assim, podemos concluir que a nosso olhar sobre o passado é míope. Num país como Portugal, não parece estranho que as narrativas históricas estejam baseadas nos feitos de apenas alguns milhares de indivíduos? Ora esta, o que aconteceu com a imensa quantidade de portugueses que circulavam e circulam pelas aldeias, vilas, cidades, no decorrer de tantos séculos? Não fizeram nem fazem a História?

Quantas das decisões dos imperadores não foram erigidas a partir de uma conversa sussurrante entre eles e suas (ou seus) amantes? Quantos soldados ditaram aos seus generais as soluções para a vitória numa guerra que já se considerava perdida? Quantas mãos pintaram as mais prestigiadas obras primas? Quantos homens e mulheres levantaram-se contra o sem número de regimes autoritários e definitivamente compuseram as revoluções que os derrubaram? Quantas cabeças estavam ao lado dos grandes inventores, alimentando-lhes de grandes ideias?

A mera constatação de que os feitos heroicos não são obras individuais nos causa alguma perplexidade. Provavelmente, você riria se eu levantasse a suposição de que, afinal, nem só a Newton devemos a eletricidade. Mais: Napoleão, sozinho, não teria refundado a França. Quem estava com eles, o que lhes disseram? Enquanto eles guerreavam ou desenvolviam ideias geniais, o que faziam os que estavam ao seu lado?

Temos sido injustos com estas almas, as quais já não poderemos ouvir. Diante desta obliteração, temos sido injustos connosco mesmos, uma vez que ajudamos a se consolidarem sociedades ancoradas em mitologias individualistas, as quais justificam  hierarquias e impõem sobre a generalidade das pessoas competências que, ao invés de as emancipar, torna-as em pesos mortos, vítimas sacrificais por excelência, culpadas da própria insignificância, desmerecedoras de prestígio, relegadas ao canto escuro das narrativas, alvos da compaixão ou da caridade, nos escritos elementares sobre a História. A elas, reserva-se a rubrica popular, o meandro obscuro e artificial da tradição, o esmo recôndito da descrição genérica da vida privada, em contraste com a opulência palaciana.

Ledo engano a que estamos submetidos. Se pudéssemos voltar no tempo, de certeza veríamos o quão importantes foram estas vidas. Foram delas, sem dúvida, as atitudes que, combinadas, geraram as maiores inovações de que temos notícia, embora a autoria das mesmas seja sempre reservada, com exclusividade, aos heróis que já conhecemos. Sem falar das pequenas e cotidianas revoluções que sequer conhecemos e dos fatos e fenômenos os quais, embora importantes, não foram selecionados para compor a historiografia que atualmente nos é inculcada.

O mesmo podemos dizer sobre os mártires. Afinal, no rescaldo do que se convencionou chamar de História, tombaram quantos cadáveres que não foram depositados em urnas de mármore, nem endeusados por legiões de seguidores, imbuídos de certezas sobrenaturais?

 

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