8 Maio 2022      13:33

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A guerra de Piero

por Giuseppe Steffenino

Muitos corpos e rostos de soldados mortos, ucranianos e russos, nos foram mostrados nesta guerra inútil. Há muitos campos de trigo na Ucrânia que as papoilas não tardarão em  manchar de vermelho.

Isso lembrou-me uma canção/poema italiano que me impressionou quando eu era moço. Vou tentar traduzir parte do texto:

"Dormes enterrado num campo de trigo Não é a rosa, não é a tulipa

quem te cuida da sombra das valas Mas eles são mil papoilas vermelhas.

Para Piero, para agora!

Deixa o vento trazer-te na sua boca

a voz dos mortos na batalha

Aqueles que deram as suas vidas e tiveram uma cruz em troca!

Mas tu não ouviste e o tempo passou

com as estações num ritmo de marcha E tu vieste para cruzar a fronteira

num lindo dia de primavera

E enquanto marchavas com a tua alma nas costas

viste um homem no fundo do vale

exatamente com o teu humor

mas com um uniforme de outra cor

Atira nele Piero, atira nele agora!

E depois de um tiro, atira nele outra vez até vê-lo cair no chão para cobrir o seu sangue

E se tu atiras na testa ou no coração

Ele só terá o tempo de morrer

Mas o tempo sobrará para tu veres os olhos de um homem enquanto ele morre...

Ele vira-se, e vê-te e tem medo

Pega na arma e não te devolve a cortesia

Caíste no chão sem reclamar

E notaste apenas num momento

Que esse tempo não seria suficiente

Para pedir perdão por cada pecado

Caíste no chão sem um gemido

E notaste em apenas um momento

Que a tua vida acabou naquele dia

E não haveria retorno...

Dormes enterrado num campo de trigo..."

 

Fabrizio de André (1940-1999) foi um dos compositores italianos mais importantes do século passado. Genovês de família piemontesa, interrompeu os estudos para se dedicar inteiramente à música. Admirava Georges Brassens, e nem traduzia algumas músicas. Ateu e de inspiração anarquista, levou uma vida indisciplinada e boémia na Génova dos anos 60 e 70, onde tocou em tabernas. As suas canções usam uma linguagem muito bonita e simples, às vezes o dialeto genovês, com imagens de grande poesia. Ele estava especialmente interessado nos marginalizados, nos derrotados, nos rebeldes, nas prostitutas, nos últimos: "Nada vem dos diamantes, as flores vêm do estrume". A guerra de Piero é de 1966. De 1970 e 1971 os seus dois álbuns que eu mais gostei, e ainda gosto, mais: La Buona Novella (A boa notícia, inspirado nos evangelhos apócrifos) e Non al denaro, non all'amore né al Cielo (Não ao dinheiro, não ao amor ou ao Céu, inspirado na Spoon River Anthology, de E . Lee Masters).

Mais de 10.000 pessoas compareceram no seu funeral em Génova.

 

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Giuseppe Steffenino, natural do noroeste da Itália, está ligado a nós pela admiração que ele tem a Portugal e ao Alentejo em particular, onde, com a sua companheira, Manuela, foram salvos de um afogamento numa praia o ano passado. Aqui e ali a pandemia está a mudar a nossa maneira de viver e pensar. Esse médico com barba branca, apaixonado por lugares estrangeiros e um pouco idealista, interpreta este tempo curvo, oferecendo-nos os seus sonhos, leituras, viagens, lembranças, pensamentos, perguntas, etc.