por Giuseppe Steffenino
Muitos corpos e rostos de soldados mortos, ucranianos e russos, nos foram mostrados nesta guerra inútil. Há muitos campos de trigo na Ucrânia que as papoilas não tardarão em manchar de vermelho.
Isso lembrou-me uma canção/poema italiano que me impressionou quando eu era moço. Vou tentar traduzir parte do texto:
"Dormes enterrado num campo de trigo Não é a rosa, não é a tulipa
quem te cuida da sombra das valas Mas eles são mil papoilas vermelhas.
Para Piero, para agora!
Deixa o vento trazer-te na sua boca
a voz dos mortos na batalha
Aqueles que deram as suas vidas e tiveram uma cruz em troca!
Mas tu não ouviste e o tempo passou
com as estações num ritmo de marcha E tu vieste para cruzar a fronteira
num lindo dia de primavera
E enquanto marchavas com a tua alma nas costas
viste um homem no fundo do vale
exatamente com o teu humor
mas com um uniforme de outra cor
Atira nele Piero, atira nele agora!
E depois de um tiro, atira nele outra vez até vê-lo cair no chão para cobrir o seu sangue
E se tu atiras na testa ou no coração
Ele só terá o tempo de morrer
Mas o tempo sobrará para tu veres os olhos de um homem enquanto ele morre...
Ele vira-se, e vê-te e tem medo
Pega na arma e não te devolve a cortesia
Caíste no chão sem reclamar
E notaste apenas num momento
Que esse tempo não seria suficiente
Para pedir perdão por cada pecado
Caíste no chão sem um gemido
E notaste em apenas um momento
Que a tua vida acabou naquele dia
E não haveria retorno...
Dormes enterrado num campo de trigo..."
Fabrizio de André (1940-1999) foi um dos compositores italianos mais importantes do século passado. Genovês de família piemontesa, interrompeu os estudos para se dedicar inteiramente à música. Admirava Georges Brassens, e nem traduzia algumas músicas. Ateu e de inspiração anarquista, levou uma vida indisciplinada e boémia na Génova dos anos 60 e 70, onde tocou em tabernas. As suas canções usam uma linguagem muito bonita e simples, às vezes o dialeto genovês, com imagens de grande poesia. Ele estava especialmente interessado nos marginalizados, nos derrotados, nos rebeldes, nas prostitutas, nos últimos: "Nada vem dos diamantes, as flores vêm do estrume". A guerra de Piero é de 1966. De 1970 e 1971 os seus dois álbuns que eu mais gostei, e ainda gosto, mais: La Buona Novella (A boa notícia, inspirado nos evangelhos apócrifos) e Non al denaro, non all'amore né al Cielo (Não ao dinheiro, não ao amor ou ao Céu, inspirado na Spoon River Anthology, de E . Lee Masters).
Mais de 10.000 pessoas compareceram no seu funeral em Génova.
Imagem de 1zoom .me
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Giuseppe Steffenino, natural do noroeste da Itália, está ligado a nós pela admiração que ele tem a Portugal e ao Alentejo em particular, onde, com a sua companheira, Manuela, foram salvos de um afogamento numa praia o ano passado. Aqui e ali a pandemia está a mudar a nossa maneira de viver e pensar. Esse médico com barba branca, apaixonado por lugares estrangeiros e um pouco idealista, interpreta este tempo curvo, oferecendo-nos os seus sonhos, leituras, viagens, lembranças, pensamentos, perguntas, etc.