30 Dezembro 2017      10:56

Está aqui

FRIOZINHO

Parecia que estava no Pólo Norte e que à sua volta, tudo o que a rodeava era branco e frio. Neve. Muita neve e um vento gélido que atravessava a espinha e, chegado ao tutano, metia-se por ali acima e congelava o cérebro. Assim se sentia ela naquela manhã. Que briol, pensava. Tanto frio que faz nesta terra e tenho de sair do quentinho às poucas da manhã para me por a caminho do trabalho. Se houvesse um nevão jeitoso, talvez conseguisse ficar em casa por não conseguir sair à rua. Mas não havia nada disso.

Estava um friozinho, como dizia todos os dias. Apesar das ásperas temperaturas negativas, não deixava de fazer a sua vida quotidiana. No fundo, no fundo, o que ela gostava mesmo era da rijeza do frio, de sentir a pele a esticar, como se tivesse vinte anos outra vez, sem pensar em esticar a pele. Viva, como se chamava, andava sempre a queixar-se do tempo. Tinha uma relação amor-ódio com qualquer uma das estações. Se fosse o Verão, era porque havia demasiada humidade e o calor era tanto que não conseguia aguentar estar na rua mais do que cinco minutos. Incomodava-a verdadeiramente.

A primavera tinha igual cotação na sua opinião. Aquela coisa do pólen era uma chatice. Viva tinha alergia a tudo e todos os tipos de pólen. A primavera, por isso mesmo, não a fazia feliz. Já nem se fale do outono, com os ventos e as folhas a voar. Uma pessoa nem sabe o que deve usar nem nada. Ainda não está frio mas o calor nem sempre aparece.., estes pormenores irritavam Viva. E claro, o inverno, com o friozinho, era impossível viver assim. O friozinho a que Viva se referia rondava os 12 graus negativos. Eram dias mais ou menos como aquele em que escrevo este texto. Que briol, pensava ela e penso eu também. Tinha de se proteger bem do vento do Pólo Norte que lhe chegava aos agasalhos.

Viva vivia com a família e tinha uma vida calma, tirando as coisas todas que lhe faziam impressão e lhe causavam pequenos distúrbios na sua vida quotidiana. Não o confessava, mas o seu amor pelo frio era tanto que passava tempos e tempos a desejar que chegasse. Não dizia nunca isto a ninguém mas os seus atos falavam mais alto do que ela e o facto de ir propositadamente comprar casacos, luvas, cachecóis e gorros em pleno verão, denunciavam que havia ali qualquer coisa que não batia certo. Isso e, adicionando ao assunto, o facto de ter posto ao seu filho o nome de Frio e a quem chamava carinhosamente de Friozinho. Aquela criança passou as passas do Algarve.

Comecemos pelo início e pelo modo como decorreu o nascimento de Frio. Era o dia mais pequeno do ano e, naquele preciso dia, o mais frio do ano. A geada tinha coberto os campos todos ao lado da casa de Viva. Um campo que era verde, estava naquele dia branquinho, branquinho. E gelava. Frio nasceu roxo. Não sei se era do frio que corria, ou se era mesmo do nascimento difícil que tivera. Se algum dia se lembrasse de como tinha sido, recordaria a dificuldade que fora… Viva lembrava-se das dores e do esforço que tivera para dar o Frio à luz. Não esqueceria mais as dores do parto. Nesse dia, mesmo com o vento a soprar gélido, a mulher sentiu o calor da vida humana que se separava de si para, independente, continuar ligada através do tempo. Nem quando morressem os dois, se perderia a ligação mãe-filho. Quando lhe viu os olhos que se abriram ao nascer e o choro, Viva soube que Frio seria o nome. Ninguém concordou com ela e houve até bastantes reclamações mas a mulher levou a dela avante.

Friozinho cresceu no seio da casa e do aconchego de um lar quentinho e, conforme crescia e a mãe envelhecia, começou a perceber o fascínio dela pelo inverno e pelo frio. As suas maiores alegrias tinham acontecido todas naquela época. Porque ele nascera e porque essa tinha sido na estação do vento que sopra gelo, Viva tinha essa relação especial com o tempo fresco, embora nunca a reconhecesse. Frio, gelo, a pele esticada. Na ideia de Viva, o inverno fava-lhes anos de vida e enrijecia a sua força. Por isso Friozinho tinha nascido no inverno e por isso, mesmo que o vento soprasse gelo, as geadas e a neve traziam o sol escondido.

 

Imagem de pixabay.com