4 Agosto 2018      13:17

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Extrato bancário

Olha, sabes quando nos conhecemos? Lembras-te desse momento? Eu era o funcionário do Banco e tu eras a menina doce e gentil de olhos azuis, que timidamente se aproximou do balcão para fazer um depósito em euros e trocar um cheque da segurança social, ou das Finanças, já não me lembro bem. Parece que no momento em que te via a minha gravata saltou do lugar e transformou-se numa serpente encantada que dançava ao som da música surda que tu emanavas dos teus olhos e da tua pele. Lembras-te?

Lembras-te que vinhas acompanhada do matulão do teu namorado da altura. Um tipo execrável aos meus olhos, musculado, daqueles que passam o tempo no ginásio e se enchem de esteroides. Que me perdoes esta linguagem, mas não me esqueço de te ver, debaixo da sombra dele. Parecia que te protegia aos olhos dos outros. Aos meus, sobrepunha-se a ti como uma sombra negra e maléfica.

A partir desse momento em que troquei o cheque da segurança social ou das Finanças, já não me lembro, a minha vida mudou. A primeira coisa que mudei foi a brilhantina e a risca a três quartos. Deixei de me pentear e de ter o cabelo tão ensebado. Era um rebelde agora. Tão rebelde que muitos dos dias não me penteava. Ia para o ginásio três semanas. Levantava pesos de forma voraz para acabar com o fraco físico. Tudo isto na expetativa de te ver chegar à fila do Banco e de te atender outra vez. Acho que seria capaz de passar uma rasteira aos meus colegas só para que me calhasses a mim.

À noite os meus sonhos, ou pesadelos, eram todos dedicados a ti. A minha cabeça parecia o coração. Batia tanto. As minhas veias parecia que iam saltar. Só o teu nome ecoava nas paredes do meu crânio. Viviane Lucineide. Viviane Lucineide. Apaixonei-me, acho eu. Pela primeira vez na minha vida, sentia alguma coisa que não fosse amor pelas contas, pelos cheques em branco e pelos talões e extratos. Percebi que o amor, por tua causa, é uma coisa que as pessoas sentem e que as faz despirem-se, sem ser por obrigação. Despem-se com gosto. Não para tomar banho ou trocar por outra coisa qualquer, mas porque o amor as faz não ter vergonha do seu corpo. O corpo, por muito magro ou muito gordo, flácido, desajeitado, deixa de ser motivo de embaraço. As figuras tristes que os amantes fazem não são tristes porque trazem ao rosto um sorriso bonito e que nunca se cansa.

Era assim que eu me sentia, Viviane Lucineide. Eras tu os meus cheques e os meus extratos. Passaste a ser a minha nota de cinquenta euros. Os cifrões no meu rosto transformaram-se em coraçõezinhos. Mas tu não te lembrarás de mim. Voltei a ver-te, um dia, tu e a tua sombra, no supermercado. Estavas duas caixas abaixo de mim. Fiquei tão nervoso que a gravata voltou a dançar como a dançar como a serpente e os meus poros passaram, em milissegundos, a transpirar e encharcaram de tal forma o tapete que a senhora que me atendia fez uma cara de repúdio. Todos sofremos por amor, minha amiga. Ter-lhe-ia dito, se tivesse tido oportunidade ou coragem.

Faltava-me isso mesmo, coragem, sabes? Por isso, decidi fazer as coisas assim. Não te devo voltar a ver, isto porque me despedi do Banco e decidi abrir uma loja de animais exóticos, pardais, piscos, periquitos, canários e serpentes. Só porque me lembram a gravata que, por sua vez, me lembra de ti e que por sua vez, me faz sorrir.

Não tendo coragem para te dizer pessoalmente e porque sei que nunca deixarias a tua sombra. Sei, sem as nossas sombras não vivemos, aproveito a parte de trás do teu extrato bancário para te enviar esta declaração de amor. Mas não me procures porque não saberia o que te dizer. Mais vale eu continuar a ser masoquista no meio dos meus pássaros do que dar um passo para te tentar roubar ao brutamontes. Sou feliz assim. Já não sonho tanto contigo e nem ouço a tua voz porque agora durmo na loja e os pássaros, sentindo a minha presença, fazem uma barulheira desgraçada. Mas no fundo, ainda gosto de ti. De Bancos já nem tanto.

 

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