10 Abril 2025      19:04

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E fez-se português

Tenho feito o exercício de refletir sobre qual foi o momento em que Portugal se tornou Portugal e os portugueses se tornaram portugueses.

Passando os olhos pela nossa história, identifico vários marcos que contribuíram para a construção da nossa identidade coletiva.

Será que foi, como descreveu Alexandre Herculano, na sua bela expressão, “a primeira tarde portuguesa”, quando os exércitos do nosso primeiro rei se digladiaram nos campos de São Mamede contra as tropas galegas de Fernão Mendes de Trava, amante de sua mãe?

Ou terá sido em 1297, com a assinatura do Tratado de Alcanizes, quando se desenharam os contornos do que hoje reconhecemos como Portugal continental?

Ou talvez tenha sido com o desfecho da crise de 1383-1385, quando, contra todas as probabilidades, os portugueses, liderados por D. Nuno Álvares Pereira, derrotaram o exército castelhano em Aljubarrota e reafirmaram a sua vontade de permanecer independentes.

Mas é possível que Portugal também se tenha forjado com o início da expansão marítima, quando as naus deixaram o Tejo rumo ao desconhecido. O descobrimento da Madeira e dos Açores marcou o arranque da nossa história trágico-marítima e do domínio de terras e povos. Pouco depois, Vasco da Gama abriu o caminho marítimo para a Índia, dando início à chamada “Era Gâmica”, prenúncio da globalização.

Neste contexto, Os Lusíadas de Camões ajudaram a fundar a língua portuguesa como pilar identitário. O idioma que falamos molda também o modo como pensamos, sentimos e nos relacionamos com o mundo.

Mais tarde, a estabilização das fronteiras do Brasil, hoje o maior país lusófono, prolongou o legado da nossa língua e cultura muito para além de nós. O português deixou de ser apenas nosso, passando a ser falado por milhões, numa herança comum repartida pelo mundo.

Poderá também ter sido com a Revolução Liberal e a Carta Constitucional que nasceu o primeiro reconhecimento, ainda que limitado, do cidadão português como sujeito de direitos.

Ou talvez tenha sido naquele abril libertador de 1974, quando, após 48 anos de ditadura, Portugal reencontrou a sua voz. Com mais de 92% de participação nas primeiras eleições democráticas e a devolução da liberdade aos povos colonizados, nasceu uma nova forma de ser português, mais livre, consciente e responsável. Um caminho que culminaria com a integração na União Europeia, reforçando a nossa identidade num espaço continental comum de valores e partilha entre povos.

E talvez ser português seja isso mesmo: não um ponto de chegada, mas um caminho constante de afirmação, de reinvenção e de pertença.

Agora que iniciamos um novo ciclo político com a eleição de um novo governo, importa lembrar que Portugal é, ainda hoje, um projeto inacabado. Um país com séculos de história, mas com o futuro sempre por cumprir, porque ser português é também viver num permanente diálogo entre o que fomos, o que somos e o que ainda queremos ser.

É por isso essencial termos mais do que programas de governo: precisamos de um projeto de futuro. Uma visão de país que seja mais longa, mais estruturada, mais ambiciosa. Que responda aos anseios e dificuldades do presente, mas que não se limite a reagir à realidade que nos é imposta. Que seja capaz de planear com coragem e com esperança.

Talvez, afinal, Fernando Pessoa tivesse razão, como já o intuíra o Padre António Vieira antes dele, quando dizia que o nosso desígnio não era construir impérios de terra, mas sim erguer um império do espírito: do saber, da cultura, do humanismo. Um Portugal que se mede não pelas fronteiras que tem, mas pelas ideias que gera, pela arte que cria, pelos valores que partilha com o mundo.

E talvez agora, num tempo em que o mundo caminha por entre incertezas crescentes e enfrenta desafios que poucas gerações vivas conheceram, talvez aí, precisamente aí, Portugal possa reencontrar o seu papel. Talvez nessa escuridão, possamos ser um ponto de luz. Talvez seja esse o nosso desígnio, por enquanto.