10 Setembro 2016      10:31

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É FEITIO…

"PARALELO 39N"

Há coisas que o vento deixa passar e outras coisas que a tempestade segura, agarrando-se com ventos e águas. Não é defeito, é feitio. Há pessoas que são em si uma tempestade, um turbilhão de movimentos e uma tempestade que se agita em volta de si próprio. Não seguindo todas o mesmo princípio, tornam-se estas tempestades em pequenos copos de água. Não é defeito, é feitio.

A manhã começava cedo, por volta do nascer do sol e acabava tarde, quando o sol se punha. As coisas pareciam calmas naquela pequena cidade que era tão igual a todas as outras e à semelhança da cidade dos bonecos amarelos se chamava Springfield. Os campos da primavera estendiam-se em quase todos os Estados deste país grande. Não era defeito, era feitio.

A família apressava-se para se preparar. O dia apressava-se para que eles se preparassem e o dia corresse normalmente, na medida do possível. Na medida do possível, tentava o homem da casa limpar a entrada de casa, depois do nevão que tinha assolado a localidade na noite passada. A mulher da casa vestia os filhos e preparava-os para irem à Escola, tendo em consideração que a escola provavelmente iria estar aberta. Ralhava com eles que, dormiam ainda de pé, em frente às suas camas. Não era defeito da mulher, era feitio.

Todos dentro do monovolume preparavam-se para conduzir em direção à escola. No banco de trás, os dois irmãos, gémeos, dormiam, tentavam manter-se acordados, abrindo um ou outro olho. Um fechava, o outro abria. Na frente, a mulher conduzia o carro e o homem, devidamente uniforme, vestido a rigor, fato Armani, sapatos Church. Discutiam, chateavam-se por causa de nada. Eram coisas que o vento deixaria passar e certamente consideraria inócuas. Faziam uma tempestade num copo de água. Não era defeito, era feitio.

Chegaram à Escola. Os miúdos saíram do carro, a dormir, meio acordados já a tentar manter os dois olhos abertos. Não eram diferentes de todos os outros que se encaminhavam para a porta da Escola fazendo lembrar uma cena da série The Walking Dead. Carregavam as mochilas, maiores do que eles. Não se diferenciavam de nenhum dos outros miúdos encasacados, todos do mesmo tamanho. Não era defeito, era feitio.

Arrancaram, no meio dos flocos de neve, conduzindo no pavimento cinzento que contrastava com todo o branco que, de um lado e do outro, se acumulava. No meio da estrada, duas riscas contínuas amarelas que separavam os que iam dos que vinham. Continuavam a discutir um qualquer assunto que nem um nem outro já sabiam bem do que se tratava. A neve continuava a cair, nos sítios errados e nos sítios certos. Não era, certamente, defeito e nem se poderia dizer que era feitio. Era a natureza.

O carro parou em frente ao edifício vidrado, grande, tantos andares que a sombra devia chegar ao outro lado da cidade. Se não fosse dia de chuva, teria certamente sombra. Assim, o edifício de vidro não tinha sombra. Tinha só um ar quentinho e iluminado por dentro. Era quente mesmo. Não era defeito, era feitio.

A mulher deixou o marido, no meio da discussão que, sem se aperceberem, terminara, seguiu viagem. Em cada uma dessas viagens, o tempo parecia sempre igual, mas ficava nos segundos que restavam, a ideia de insatisfação, de ficar algo por dizer, alguma coisa por fazer. As ideias que se acumulavam nas cabeças de cada personagem misturavam-se e eram menos claras do que, escritas, pudessem transmitir o que se passava efetivamente nas cabeças das personagens. Talvez quem as escreve não as consiga transmitir também e não sejam entendidas da forma que são. Tão simples como uma viagem de carro com três paragens são algumas ideias que, em jeito de tempestade, se acalmam e transformam num copo transparente e sereno. Complica-se? Talvez. Mas, não é defeito, é feitio.

 

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