5 Março 2022      09:51

Está aqui

E agora, Europa?

O mundo mudou. A bárbara invasão da Ucrânia pela Rússia obriga a inúmeras reflexões que nunca quisemos, seriamente, fazer. Ainda em pandemia mundial, e com uma seca que assola a península ibérica, Putin é o ditador que se segue e surpreende (ou não) com tiques de saudosismo imperialista. Nunca o levámos a sério. E agora?

Quem está nas trincheiras connosco?

O velho continente foi embalado pela inocente ideia de construção da paz, julgando que jamais seria confrontada com uma guerra. Foi ignorando os avisos, confiando na diplomacia e no paternalismo militar americano. Todos nós. O sonho da globalização, da Europa sem fronteiras, do livre trânsito de pessoas e mercadorias, da moeda comum e dos Tratados Internacionais foi em nós consolidando uma ideia de paz duradoura, que agora parece uma ideia pueril. Deixámos de ser auto-suficientes em bens essenciais porque a globalização nos permitia adquirir tudo mais barato, com uma pegada ecológica menor (no nosso quintal) e com menos custos de produção.

Uma política industrial pujante é apanágio apenas de alguns Estados-membros e a política energética da Europa inexiste. A política agrícola comum pode vir a revelar-se um desastre e uma estratégia política comum é uma quimera.

Em 2020, a ministra da Agricultura, Maria do Céu Albuquerque, afirmava que Portugal tinha um grau de autoaprovisionamento próximo dos 85%, destacando-se o azeite (160%) e o tomate (175%). De acordo com os dados avançados pela governante, por produto, o grau de autoaprovisionamento dos cereais estava nos 18%, da carne em 75%, dos frutos nos 77%, do vinho em 113%, do azeite nos 160%, dos hortícolas nos 155%, do tomate em 175%, da batata em quase 49%, do leite em 106%, do queijo em 65% e da manteiga em 152%. Propunha-se atingir em 2022, um grau de autoaprovisionamento de 38% quanto aos cereais, melhorando a produção média em relação ao milho, cereais praganosos [trigo mole, trigo duro, centeio, cevada, aveia, triticale] e também ao arroz.

Para isso, em 2018, o Governo aprovou a Estratégia Nacional para a Promoção da Produção de Cereais, com os objetivos estratégicos de “reduzir a dependência externa, consolidar e aumentar as áreas de produção”, “criar valor na fileira dos cereais” e “viabilizar a atividade agrícola em todo o território”. Volvidos 4 anos, qual o grau de execução dessa estratégia?

Em 14.07.2021, a ANPOC e a ANPROMIS, em comunicado, alertavam para a “premência do Governo implementar, sem hesitações e no mais curto espaço de tempo, a Estratégia Nacional para a Promoção da Produção de Cereais, transpondo em medidas concretas as preocupações manifestadas em diversas ocasiões pela Senhora Ministra da Agricultura, Dr.ª Maria do Céu Antunes, sobre a necessidade de Portugal aumentar o seu grau de autoaprovisionamento em cereais, garantido a estabilidade do rendimento dos produtores nacionais, condição fundamental para alcançar este objetivo.” Concluímos que apesar dos anúncios, nada foi concretizado.

Portugal continua a registar dos mais baixos graus de autoaprovisionamento do mundo em cereais, uma situação grave de dependência externa numa produção essencial que está na base da alimentação, não só no consumo humano como na alimentação animal. De um modo geral, Portugal produz cerca de 20% dos cereais que necessita, mas no trigo, por exemplo, o grau de autoaprovisionamento é de apenas 4%. A área semeada de cereais tem diminuído de uma forma muito acentuada (quebra de 75% nos últimos 30 anos), o que alerta para o perigo de se agravar a dependência do exterior se não forem adotadas, urgentemente, as medidas necessárias para aumentar a produção nacional. 

O sector dos cereais é um dos mais influenciados pela liberalização e globalização dos mercados. A invasão da Ucrânia pela Rússia, dois grandes exportadores de cereais também para Portugal, a seca e um ministério da agricultura inexistente, que não planeou a gestão dos recursos hídricos, nem medidas mitigadoras dos efeitos da seca na agricultura e na agropecuária, são o cocktail explosivo perfeito para a catástrofe alimentar que podemos vir a sofrer (oxalá não passe de um cenário académico(?).

Fica um pequeno (?) exemplo para o leitor melhor compreender: “Os valores das cotações de cereais importados têm vindo a aumentar, devido ao aumento dos custos de produção e transporte, refere a análise do SIMA – Sistema de Informação de Mercados Agrícolas, referente à semana de 21 a 27 de Fevereiro de 2022. A cotação da cevada forrageira importada, com entrada no Porto de Lisboa, atingiu os 370 euros por tonelada, um aumento de 21% face à semana anterior e de 64% face à semana homóloga de 2021. Já a cotação do trigo mole forrageiro chegou aos 390 euros por tonelada, registando um aumento de 26% em relação à semana anterior e de 54% face a igual período do ano passado.” Nota: os dados ainda não repercutem a guerra…

A realidade é sempre um mito, mais criativa que a mente humana. Forçada pela brutalidade da guerra, que nos atingiu como um meteorito, a Europa e os seus decisores são agora forçados a repensar todas as públicas comuns europeias ou a ausência delas. Vamos apostar na agricultura? Sendo que agora todos percebem que é uma questão de sobrevivência? Vamos finalmente olhar para os recursos naturais/energia como uma questão de Estado, porque também de sobrevivência se trata? Vamos redirecionar o foco para as nossas fronteiras e pensar uma estratégia de defesa comum da Europa? Vamos abrir a Europa aos países ameaçados por uma segunda vaga de invasões russas? Vamos abraçar os milhões de refugiados/desalojados/migrantes? Vamos defender a Democracia e a Europa ou limitamo-nos às sanções económicas? Os desafios são complexos e determinantes.

Mas não podem ser ignorados!