14 Janeiro 2018      12:59

Está aqui

DO CINEMA, DO CINEMA DE GUERRA E DO CINEMA DE LARISA SHEPITKO

Shepitko: Larisa no mundo dos homens.

 

Pode partir-se do princípio, que aliás soa a óbvio, que qualquer filme é uma luta que se idealiza intensa entre a visão do seu criador e a luz que ricocheteia, percepcionada como imagem pelo espectador (segundo se diz) na orla do cerebelo. Um mecanismo (por via de um mecanismo) de planeamento e execução tendo em vista um determinado resultado, que o criador pretende sublime.

[O cinema como uma contenda entre duas imagens, portanto: a imagem primordial, na mente do criador, imagem, se se quiser, emocional; a outra, a que se expõe perante o espectador]

Entre a ideia e a sua concretização resta a distância que é preciso percorrer: entre o íntimo criativo e as expectativas do observador. Eliminar essa distância é o sonho de qualquer criador, bem como de qualquer espectador que se preze, tido evidentemente por ideal. [Dissolução, como se verá, é melhor palavra] Não é o único objectivo da Arte, mas é absoluto quando nos referimos ao Cinema dentro da Arte. Começa por custar muito dinheiro e é na essência imagem real (o movimento ocorre de acordo com o esperado) – vive de devolução imediata e imediatamente capturada. O espectador, mais do que alguém que valida, é parte constituinte da obra, é uma presença e não uma ausência que observa uma construção artificial para seu prazer. Não é sequer alguém que apenas testemunha os factos a uma certa distância. É muito mais (ou muito menos, não importa) do que isso.

Assim sendo, o que se mostra não vive livre como noutras artes, está subordinado a algo que podemos chamar de eficácia mínima necessária. Não é, enfim, simplesmente a organização interna do criador expressa como símbolo. Dir-se-á que em certos casos assim é, dando exemplos que o comprovem, como os filmes muito pouco vistos de Nathaniel Dorsky, que se tomam por inteiramente simbólicos e sem a tal necessidade de presença; mas é apenas aparência, truque do cérebro, que joga com uma tentação inevitável: olhar para esses filmes como se fossem outra coisa, partindo do princípio intuitivo (e dado como lógico) que se está a ver, que se começou por ver, cinema, esquecendo a sua forma (a dos filmes, claro está). Aí a presença não ocorre porque somos parte de uma narrativa, mas porque somos parte de uma intimidade, adormecidos há longo tempo, a viver no rebordo do sonho.

Olha de fora somente quem está de fora e o espectador de cinema não se pode colocar de fora, apenas criar essa ilusão em determinadas circunstâncias (i.e., determinados filmes ou certos estados alterados de consciência).

A Guerra como motivo condutor é um dos contextos que melhor permite avaliar o que foi dito antes.

Como viver o seu inferno absoluto (ou glória absoluta), conforme a perspectiva? Estes termos e não outros, pois é temática que exclui elementos neutros.

O que mostrar para que se viva eficazmente a sua consequência? A guerra ou os bastidores? O aparato ou a memória (mais ou menos longínqua)?

 

Recordemos os seguintes filmes (lista que garantimos espontânea, não sujeita a ajuste posterior):

A)

Apocalypse Now (1979), Francis F, Coppola

Vem e Vê (1985), Elem Klimov

O Resgate do Soldado Ryan (1998), Steven Spielberg 3

The Thin Red Line (1998), Terrence Malick

Objective Burma (1945), Raoul Walsh

Platoon (1986), Oliver Stone

O Dia Mais Longo (1962), Ken Annakin, Andrew Marton e Bernhard Wicki

A Colina dos Heróis (1987), John Irvin

Nascido Para Matar (1987), Stanley Kubrick

The Green Berets (1967), John Wayne

 

B)

Jardins de Pedra (1988), Francis F. Coppola

The Best Years of Our Lives (1946), William Wyler

O Mensageiro (2009), Oren Moverman

 

C)

Wings (1966), Larisa Shepitko

O Caçador (1978), Michael Cimino

 

Sintetizando: A) filmes em cenário de guerra ou na sua preparação; B) filmes passados nos bastidores do combate ou já sob as suas consequências e C) filmes híbridos.

Alguns factos: a proporção não deixa margem para dúvidas, A) detém uma percentagem esmagadora na memória imediata (66,67%); em B) e C) nenhum dos filmes glorifica a guerra; de entre os filmes que glorificam a guerra, muito naturalmente, nenhum se refere a uma guerra perdida pelo país produtor do filme; seja em A), B) ou C), a maioria termina com uma ou mais mortes, on e off-screen, mas apenas um ousa começar com um casamento e terminar com um funeral, num longo lamento de cento e oitenta e dois minutos (referimo-nos a The Deer Hunter).

Enfim, não se vive a glória da guerra em filmes passados nos seus bastidores. Não será a glória através do combate a ilusão que justifica a eventual necessidade da guerra – guerra feita filme, filmes que são uma guerra, como Baudrillard certa vez disse de Apocalypse Now (e que, por estranha ironia para com quem escreve esta breve nota – riso de escárnio de um qualquer deus com muito pouco para fazer, em busca de distracção à custa da sua criação –, não cola com o raciocínio implícito na questão prestes a ser formulada, pois é sobre quase tudo, mas não sobre a glória da guerra)?

Caso singular, em território desconhecido, é o que resulta do 14º filme – primeiro de C) – da lista, Wings, de Larisa Shepitko. Apesar de no início parecer que nos leva por esse caminho, de tão críptico na forma como nos atira contra o campo-de-forças das suas personagens, tensas como se na iminência de um confronto com o inimigo que ainda se encontra por detrás da cortina, não se passa nos bastidores da guerra, antes num tempo sem noção de tempo em que muito ao longe se vislumbra, através da memória, e praticamente em subexposição, uma guerra. Um amor que se perdeu numa guerra. Uma necessidade impalpável (ainda que figurável) que permaneceu na intimidade, coração agora arrefecido, da personagem principal. Asas com que uma mulher sonha numa cidade de província de hábitos e aparência muito pouco soviéticos. O filme foi produzido na então URSS.

Nadezhda Petrukhina, 41 anos. Meados da década de 60. Houve um tempo em que pilotava aviões de combate, agora leva uma vida simples como directora de uma escola de ensino profissional (monotonia é o termo que buscam, a hipótese da individualidade é o que eventualmente estranham). Tem uma filha de 20 anos que não compreende. Alunos a quem fala de sacrifícios, da grande guerra de libertação, também incapazes de entender. Um homem que a ama, mas, de novo, a incompreensão… Um aluno em especial é a súmula de todo a norma de distanciação em que se tornou a sua vida. A eventual supressão desse espaço não linear, se possível, não constrói, não leva a nenhuma ordem. Há um vislumbre de uma qualquer força dominante nas trocas de olhares entre directora e aluno, que se esconde por trás da violência exposta. Pode ser o óbvio: atracção sexual; magnetismo inato entre pólos díspares; mas não, afinal é gravitacional, e uma vez que as forças são discrepantes, não se anulam (como condição para atingir um novo estado dentro das fronteiras do sistema), a colisão destrutiva sem remorsos é tudo o que resta.

De íntimo destroçado, nulificado, como vimos então a perceber, subjaz a necessidade vã em torno da ordem exterior: o patriotismo, a regra cumprida, o dever do sacrifício, a honra em tempos exigida e gentilmente oferecida ao nobre camarada Estaline (nome adaptado para Aço – ou seja, Aço mais sufixo –, e afinal simplesmente Jughashvili, na versão transliterada conforme à sua Geórgia natal).

A exposição desse logro, dessa falha – [estratégia de guerrilha urbana?], na União Soviética dos anos 60, utilizando como subterfúgio a guerra contra Hitler (onde 27 milhões de soviéticos perderam a vida), é, apesar da aparente inversão, um dos grandes actos de coragem saídos da mãe-pátria dos estados marxistas-leninistas. E, sim, para nosso deleite, foi feito por uma Mulher!

Onze anos depois, para, segundo as palavras da própria, “evitar a catástrofe”, e embebida num “quase desejo físico”, Shepitko dirigiu The Ascent. Filme em cenário de guerra, e claro que esse cenário só poderia ser o da Grande Guerra Patriótica (para a maior parte do resto do mundo, 2ª Guerra Mundial).

Basta vê-lo, e em seguida traçar mentalmente o seu processo de filmagem no que era o cinema naquela época, adicionando ainda um pouco do estoicismo artístico russo a tender para o auto-flagelador (e neste ponto seremos certamente levados para o contraponto habitual que é o cinema americano; na sequência do que, fugidia bifurcação em U, teremos de voltar para trás, fechando o círculo em Francis Ford Coppola e, principalmente, no seu Apocalypse Now – o tal filme que era uma guerra, por ter sido filmado como se combate uma guerra, e assim se ter miscigenado para os seus autores e intérpretes…e espectadores, incapazes de perceber a diferença, com uma guerra) para que se perceba que foi filmado em condições extremas.

O tão reconhecido pela História inverno russo, que a tantos derrotou. À porta de casa, onde sempre esteve, para os seus. Como se as derrotas infligidas a outros nada mais tivessem sido para os nativos que soberbas vitórias com poucos custos. Vejamos o resultado da invasão napoleónica: 400.000 invasores mortos; 210.000 russos mortos, em números redondos. O caso piora drasticamente quando se analisa as vítimas da invasão alemã (números apenas relativos à incursão inicial nazi, não ao todo da guerra a leste na União Soviética): 1.100.000 alemães mortos; 4.973.820 soviéticos mortos, neste caso números um pouco menos redondos.

O custo de uma guerra, quando se mede em centenas de milhares ou milhões de mortos, não é um custo, por assim dizer, honesto, como não o é uma dívida de quinze triliões. Não há uma franqueza sentida nestes números, que divergem na mente humana como a figuração de uma viagem de cento e vinte mil anos-luz ao centro da galáxia. Shepitko, desta vez a operar no teatro de guerra, já não pode fugir para demasiado longe (como fez em Wings) – a batalha acontece aqui e não algures num espaço-tempo distante. Então o que pode fazer? Pode concentrar. Filmar o contraponto entre o rosto e o espaço em volta. Filmar de forma bela – vício de artista. Fazer-nos viver (siderados que estamos pelo sublime) a dor do percurso de um ou de poucos, a dificuldade que leva à dor, a individualidade que se vai esgotando – a aceleração centrípeta para um ponto de dimensão nula percebida pelo ser que se esvai. Ao que se apercebe que já não escapa ao inferno, resta-lhe sonhar, como por exemplo com as asas que um dia lhe permitiram ascender ou acreditar que poderia ascender.

 

Imagem de imdb.com