9 Outubro 2016      12:46

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DIAGNOSTICARAM UM TUMOR

"INCONSTÂNCIAS"

Não espere, caro leitor, que este seja um artigo daqueles que o fazem ficar com a lágrima ao canto do olho, tocado e emocionado. Este artigo não é um artigo que o vai deixar a pensar na sua longa vida e nas escolhas mais felizes ou infelizes que tomou. Não procuro, de maneira nenhuma, que tente uma caminhada nos meus sapatos (tenho o pé pequeno, de pouco lhe serviria) ou que me procure com palavras carinhosas. – Eu não sei ser assim e aquilo a que uns chamam falta, eu chamo força. Uma força que é mais personalidade que traço de personalidade.

Está perdoado, não precisa compreender. Acho, pessoalmente, que não é possível nem deveria ser imposto que se compreendesse o outro nas suas lutas interiores e pessoais. A questão não me surge por achar que a empatia não faz falta, não se engane, mas por crer que as nossas vidas se tornaram propagandas de novela, historietas que passam nos tabloides do nosso grupo privado e que nos ultrapassam acabando por se tornar apenas informações fortuitas. Ninguém saberá o que é viver o que o outro viveu, por mais opiniões que se possam cruzar e “achegas” que possam ser feitas á forma do mesmo lidar com o que viveu. No final do dia, quando a cabeça cansada toca o tecido fresco da almofada, não há mais ninguém para ouvir o que há a ser dito e isso deveria ser razão suficiente para deixar o outro sossegado.

Eu gosto de estar sossegada. Quem me conhece sabe que, por norma, há dias em que não estou para ninguém (confesso, nem mesmo para mim). Existem dias em que fico enroscada em memórias que só eu lembro e ansiedades que só eu conheço, num silêncio cerrado e numa face reservada. – transparente. A minha mãe tem até o hábito de me empurrar metaforicamente para conversas e situações sociais para me arrancar do transe em que fico, mas nunca consegue grande resultado. A verdade, caro leitor, é que são poucas as considerações dos outros, ou mesmo os outros, de que sinto precisar. Descobri a cada passo dado que quando chega a hora de ter que levantar a cabeça e continuar a andar ninguém me vai conseguir fazer passar as dores nas pernas ou me vai passar a mão pelas costas – e mesmo que passe, de que me serve? – Eu gosto de estar sossegada porque sossegada consigo prestar atenção.

Ao escrever agora parece-me muito mais assustador do que pareceu quando me foi dito. Na verdade, não foram feitas cerimónias nenhumas, não houve quaisquer hesitações e a solução foi-me apresentada prontamente. – disse a mim mesma que isto seriam razões suficientes para não ter que pensar muito que me tinham diagnosticado um tumor. “Benigno”, disse o médico, “até crescer demasiado e tornar-se maligno”. “Mas ainda não está grande”, pensava eu, a rematar. Mas ainda não está grande, penso ainda agora, fugindo mais uma vez da palavra. Da derradeira, do bicho de mil e quinhentas cabeças: tumor. Um tumor filoide. Como se o nome importasse muito, como se, pelo nome, nascesse uma nova esperança: tumor filoide.

Repeti o nome do tumor a toda a gente que me perguntou “Então, o que é que o médico disse?”. Repeti o nome com a mesma nota de esperança com que o recebi, como se o nome descreditasse o que era. De cada vez recebi um “Vai correr tudo bem, vais ver” em resposta e dei um “claro que sim, tenho a certeza que vai”, terminando a conversa incomodativa que ainda ficava a fazer comichão passado um tempo. Deixava de si um desassossego que guardava no meu sossego próprio e que recusava aos que me rodeiam e se preocupam comigo realmente.

A minha mãe quase desmaiou quando o médico me fez, no mesmo dia, a biópsia. Eu sentia o corpo tremer mas era pelo tamanho da agulha que vi apenas de relance. “Uma loba?” – Retorquiu o médico ao ver-me a tatuagem na barriga. “Então tens uma tatuagem assim e tens medo de agulhas?”- Deixei-me rir sem disposição para explicar toda a diferença entre as agulhas das tatuagens e aquelas que nos entram pela carne e se fincam na alma, e ficam fincadas mesmo depois de terem abandonado o nosso corpo, como já fiz antes, mil vezes, com vários médicos e várias analistas. A minha mãe quase desmaiou e eu, deitada na marquesa com a mão dela sobre os meus olhos, sentia o corpo tremer mas não pensava em nada. Ria da conversa, ria da não conversa, ria por rir, ria até que caiu uma lágrima. Ria para não cair uma enxurrada de lágrimas. E a rir saí do consultório como se sai de uma consulta de rotina em que nos dizem que está tudo bem.

“Estás bem?”, “Não te dói nada?”, “Não te mexas muito.”. Perdi a conta á quantidade de vezes que a minha mãe me repetiu estas perguntas durante toda a semana que se seguiu. Perdi a conta aos abraços que me deu e eu fiquei ali de braços caídos com um tom de reprimenda na voz “Ai, que mariquices!”. – O sossego sempre a falar mais alto que eu. O som da palavra tumor sempre a escapar-se para lugares a que eu fazia questão de não chegar. Ai, que mariquices, e eu a pensar que é só mais uma. É só mais uma de outras tantas. Ai, que mariquices…e um olhar desviado da preocupação de que não me falam mas que posso ver estampada nos rostos deles. – É só mais uma. Novamente e novamente, penso, é só mais uma.

Sou melhor no sossego. Descobriram-me um tumor. Um tumor filoide que só é maligno quando cresce muito. E eu prefiro ficar no sossego de saber quanta força já tive, mesmo que ninguém mais saiba. Descobriram-me um tumor filoide e eu não quero dizer que tenho medo. Que tenho só 22 anos e que tenho medo. Que me desmancho em risos quando estou nervosa e que as reprimendas na minha voz são a minha mania de fazer tudo sozinha a mostrar-se. A defender-me, a dizer-me: “Já conseguiste fazer tanto, é só mais uma”. Mas a verdade é que ninguém pode preparar a reação para o momento em que o médico diz que é um tumor. Ninguém sabe bem o que pensar quando ele diz que vai correr tudo bem, que não devemos preocupar-nos.

A verdade é que nos preocupamos. Contamos os dias até á solução e contamos os dias porque achamos que estão a demorar demasiados dias até á solução. Logo eu, essa pessoa que vive no sossego e numa independência quase avassaladora para quem de fora a observa. Logo eu, que não sou dada a mariquices e palavras suaves e palmadas nas costas.

Eu prefiro o olhar determinado. O silêncio sábio de quem se convence: é só mais uma. Não tenho medo, porque é só mais uma. Não que eu acredite que é porque deus me acha uma grande guerreira. Dane-se, eu nem sequer acredito em deus. É apenas porque eu acredito que é assim que vou aprendendo. Que é assim que o sossego de mim, esse meu sossego característico, vai fazendo sentido.

Diagnosticaram um tumor. Tem um nome, uma medida, notas de esperança e garantias de sucesso. E esse tumor a acontecer é o meu sossego a convencer-se que é no sossego que sou forte. É no sossego que a vida vai sempre acontecer para mim e é devido a esse sossego que vou conseguir levar a vida. Sempre. Afinal, é só mais uma.

Que arranque lágrimas, suor e sague. – Vai arrancar. Mas de “é só mais uma” em “é só mais uma” acabarei por ultrapassá-las a todas. Mesmo que peçam lágrimas, suor e sangue.

 

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