2 Maio 2020      10:32

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A democracia em Estado de Emergência

Na sexta-feira, dia 24 de abril, a Associação Artística Vimaranense promoveu um debate online entre José Adelino Maltez, André Freire e Francisco Teixeira. Transmitido online, via Facebook, pode ver aqui https://business.facebook.com/asmav.pt/videos/3096458607080797/ o evento contou com a colaboração do jornal Mais Guimarães e Tribuna Alentejo.

O mote para a conversa foi a questão: está a pandemia a ameaçar a democracia?

Foi uma forma diferente de assinalar o 25 de Abril, em estado de emergência, respeitando o confinamento, a ASMAV colocou à conversa os dois conhecidos professores catedráticos de ciência política e um professor de filosofia. O primeiro tema lançado para o debate foi o conceito de “democracia”, uma vez que a palavra é usada para referir regimes muito distintos. José Adelino Maltez fala de “um sonho” que vem da Grécia Antiga e que está hoje inscrito no projeto europeu, mas vai lembrando que todos os países, com exceção de algumas monarquias absolutas, como a Arábia Saudita e o Vaticano, se afirmam como democracias. Para o politólogo, aquilo em que nos devemos focar é na condição sine qua non para haver “coisa pública”, ou seja, “só há democracia quando saímos do doméstico e podemos ter praça pública”. Neste momento, conclui José Adelino Maltez, estamos “condenados” a um isolamento nas nossas casas, de vez em quando falamos na net uns para os outros… mas isto não é praça pública, isto é uma pequena fuga…”

André Freire lembra que a Europa e os EUA são os contextos em que historicamente a democracia liberal e representativa se desenvolveu e distingue esta experiência de outras que, afirmando-se democratas, lhes faltavam estas duas características. Para André Freire, a componente liberal da democracia é fundamental, já que, é aí que reside a limitação de poderes, os direitos das minorias, a separação de poderes e a resistência à tirania. “Concordo que a democracia é um ideal”, afirma André Freire, lembrando que o risco da situação em que vivemos é o recuo da componente liberal. A georreferenciação, a discriminação das pessoas por idade, as tecnologias, “tudo isso tem sido usado por alguns governos para limitar as liberdades”, afirma o professor de ciência política.

“Nada disto é garantido”, afirma Francisco Teixeira logo a abrir, lembrando os casos da Hungria e da Polónia. Embora não veja no horizonte português os problemas que se afiguram a estes Estados, Francisco Teixeira não está propriamente otimista. A afirmação de Rui Rio de que criticar o governo, neste momento, seria antipatriótico, “é altamente perturbador”, adverte. O professor de filosofia alinha ao lado de André Freire na preocupação relativamente ao uso das tecnologias e lembra, com apreensão, que “duzentas personalidades, entre as quais o presidente da UGT, pediram ao governo a georreferenciação dos ‘infetados’ com COVID”. Francisco Teixeira previne para o insólito de se pretender colocar militares nas escolas a instruir alunos e professores sobre as medidas de proteção, “é espantoso…pode simplesmente fazer-nos sorrir, ou podemos achar que há aqui algo que, se não afeta diretamente as instituições, pode ser verdadeiramente mortífero a prazo para a democracia”.

Segundo a análise de Francisco Teixeira, com exceção do “Chega”, todos os partidos e deputados na Assembleia da República são democratas. “O 25 de Abril é a grande transformação que se consolidou com a constituição de 1976”, e isso faz com que o momento tenha um lugar especial na liturgia da democracia. “Eu não tenho problema nenhum em por uma vela ao 25 de Abril”, afirma o professor de filosofia. Falando de rituais do 25 de Abril, José Adelino Maltez indigna-se com os “donos do 25 de Abril”, que “andaram a sitiar a Assembleia Constituinte de onde veio a Constituição de 1976”. Em 1978, Mário Soares fez um acordo de governo que levou a ministros os membros do CDS e, em 1979, a direita venceu as eleições. Segundo Adelino Maltez, esta alternância de poder foi a grande conquista da revolução. André Freire recorda os dias que decorreram após o 25 de Abril, como “uma tentativa de evitar a construção de um sistema demoliberal”, o que levou a que o PS durante muito tempo preferisse “despachar com o PSD e com o CDS”. André Freire concorda com a necessidade de celebração, mas alerta que não deve haver “exclusivismos”.

Relativamente à situação internacional, Francisco Teixeira mostra-se preocupado com os EUA, “a construção democrática mais sólida que se conhecia”, em que Trump tem um grande apoio nas camadas populares, mas também na grande indústria. Francisco Teixeira sublinha que não está só nesta inquietação, “o New York Times, diz que há claramente uma tentativa de Trump de usurpação constitucional”.

Adelino Maltez afirma-se eternamente grato aos norte-americanos “por nos terem ajudado a fazer a Europa”. Para o fundador da Associação Portuguesa de Ciência Política, não há nenhuma razão para preocupações com a América e com “aquele senhor que lá está”, esta não é a primeira vez que os americanos se fecham. Adelino Maltez lembra que quando foi fundada a Sociedade das Nações, após a Grande Guerra, os EUA, com um governo republicano, não participaram. Os fechamentos da América são cíclicos, “mas há uma energia na sociedade norte-americana que é vital para a democracia e ela vai triunfar”.

André Freire mostra-se preocupado com o nível que classifica de “indigência” intelectual quer do presidente americano quer de Bolsonaro. “Se eu fosse americano ou brasileiro tinha vergonha de ter um Trump ou um Bolsonaro”, confessa. Sendo o presidente americano o “grau zero da política”, para André Freire, “às vezes ele acerta”, é o caso “da necessidade de infletir a globalização, introduzir algum nacionalismo, algum protecionismo e não termos aqui uma vaca sagrada que é o livre câmbio, o livre comércio, eu acho que isso era uma boa ideia que ele trouxe, da forma errada.” André Freire terminou falando da necessidade de separar o liberalismo económico, que é preciso refrear, do liberalismo político e cultural.

 

Texto adaptado

publicado no Jornal Mais Guimarães 

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