4 Março 2021      18:09

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Decifrar como eles vivem o tempo

Ontem à noite, quando passei pela porta entreaberta da casa de banho, palavras sussurradas por uma voz que conheço impediram-me. Não tenho certeza se consigo transcrever tudo exatamente, mas tentarei. Não dormi a noite toda.

(Espelho) Há algum tempo que me calo. Ele finge que estou com raiva depois de dizer que queria comprar um espelho novo. Não é esse o motivo, e ele sabe disso. Tenho de dar-lhe tempo, para que conte outras histórias e para que eu não me torne uma obsessão enfadonha, para que ele e para os seus desafortunados leitores, se é que há algum. Há algum tempo que ele se esforça para dar um nome à figura que vive no espelho. Como se um nome, apenas um, seria o suficiente. Como se se tratasse de compreender de uma vez por todas quem é esse alguém. Às vezes, ele acredita que não sou outro senão ele mesmo, escrito da direita para a esquerda. Às vezes, porém, ele parece convencido de que dentro e por trás do espelho existe um espaço ou um mundo de consistência material palpável – como se essa concretude fosse uma característica indispensável para alguém ou algo realmente existir. Às vezes, influenciado por algumas leituras o pela religião, ele pensava  também que eu poderia ser o diabo.

(Voz de mulher) Na verdade, o diabo é uma invenção da mente dos homens, que lhe atribuem  a responsabilidade pelos instintos e pensamentos que os perturbam, por eventos que eles não podem explicar e pelas punições que eles imaginam na vida após a morte.

(Espelho) Nós somos as muitas vozes e as pessoas diferentes e variadas, nas quais os homens se reconhecem apenas parcialmente e apenas às vezes. De nós vem-lhes  a sugestão daquelas palavras que eles não teriam dito e o surgimento daqueles pensamentos e sentimentos que permaneceriam enterrados. Somos feitos de uma matéria que eles chamam de sonho, mas as imagens de si que lhes devolvemos com o artifício da reflexão são aquelas reais, que eles não olham com atenção ou que logo esquecem.

(Voz de mulher) “Como eu gostaria de ser um deles pelo menos uma vez! Ver como eles veem, ouvir como eles ouvem e decifrar como eles vivem o tempo e sofrem a morte. Como eles sentem o amor e percebem o mundo. Ser um deles, para me tornar um mensageiro de luz mais brilhante nesta era das trevas. “

Agradeço ao Wim Wenders, que me deu esta sugestão, com a conversa  (em itálico entre aspas)  sobre os telhados de Berlim entre os anjos Damiel (Otto Sanders) e Raphaëla (Nastassja Kinski), extraída do filme In weiter Ferne so nah (Tão Longe, Tão Perto) do 1993. O Tríptico das Tentações de Santo António é uma pintura de Hieronymus Bosch, datada de cerca de 1501 e conservada no Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa:  esta obra sempre me fascinou pelo subtil duplo significado que contém.  O propósito é didático, como o dos inúmeros "julgamentos universais" das pinturas medievais, mas aqui a representação é simbólica e refere-se aos sete pecados capitais. As figuras deformadas dos condenados e dos demónios que a povoam são surreais, como as de um pesadelo: podem ser os pensamentos do santo inspirados pelo demónio ou por seus próprios medos.

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Nota do editor: Giuseppe Steffenino, natural do noroeste da Itália, está ligado a nós pela admiração que ele tem a Portugal e ao Alentejo em particular, onde, com a sua companheira, Manuela, foram salvos de um afogamento numa praia o ano passado. Aqui e ali a pandemia está a mudar a nossa maneira de viver e pensar. Esse médico com barba branca, apaixonado por lugares estrangeiros e um pouco idealista, interpreta este tempo curvo, oferecendo-nos os seus sonhos, leituras, viagens, lembranças, pensamentos, perguntas, etc.