13 Junho 2020      10:24

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De George Floyd ao Padre António Vieira. Como uma causa justa degenera

De 25 de Maio a 11 de Junho vão apenas 17 dias de intervalo. A primeira data assinala o bárbaro assassinato de George Floyd, acerca do qual já muito se disse, ainda que, esse muito, peque por insuficiente. A segunda data assinala o ignorante e absurdo acto de vandalismo à estátua do Padre António Vieira em Lisboa. E como se todo o cenário não fosse já suficientemente pintado de tragédia, para piorar, ambas as situações acabam por estar tristemente interligadas.

O assassinato de George Floyd veio, e bem, reacender o velho trauma racial da sociedade ocidental, ainda que, no prisma dos EUA, que é significativamente diferente dos traumas raciais português, francês, belga, holandês, brasileiro, britânico e outros. Todavia, sendo os EUA, desde há décadas, o centro mundial da cultura e valores ocidentais por via da sua massiva exportação de imagem pela comunicação, pelo cinema ou pela cultura pop, um evento desta ou de outra natureza naquele território atinge uma escala mundial com relativa facilidade. Se George Floyd fosse português, o seu assassinato teria tanto alcance como o de Alcindo Monteiro, ou seja, apenas nacional. O mesmo aconteceria se este fosse francês, belga ou alemão.

Nessa medida, a exportação deste caso, indignou as sensibilidades raciais do mundo ocidental, o que é natural e, ademais, é benéfico para a causa justa da luta anti-racista. Não obstante, este caso exportou não só a indignação, mas também a sua forma no contexto racial norte-americano, e é aqui, precisamente, que se dá o choque contextual, pois, o contexto do problema racial norte-americano não encaixa no contexto do problema racial português, francês, belga… Por uma simples razão, não são iguais nem sequer semelhantes.

É neste ponto que a imitação do caso americano toma contornos absurdos. Porque imitar a resposta americana em Portugal é uma acção que, simplesmente, não tem qualquer encaixe possível na nossa realidade. Se já é difícil aceitar o derrube de estátuas nos EUA (não por ser apenas absurdo, como também perigoso), torna-se absolutamente intolerável aceitar a vandalização de estátuas e outros monumentos em Portugal, por duas razões, a história de ambos os países não é a mesma, e a História não se derruba, discute-se!

Que sentido faria Portugal ser uma república e estar pelejado de castelos, palácios e monumentos que glorificam a monarquia e os passados reis e rainhas? Que sentido faria Portugal ser uma democracia e ostentar monumentos de arquitectura fascista (Português Suave) como o Padrão dos Descobrimentos, a Praça do Império, a Fonte Luminosa ou o Palácio da Justiça no Porto? Por que razão há uma estátua de Calouste Gulbenkian, que acreditava que a pedofilia era medicinal? Ou de Marquês de Pombal, que teve tanto de salvador como de facínora e assassino?

Porque é que estas figuras e circunstâncias são eternizadas? Talvez porque a reflexão pública aceita e agradece aquilo que fizeram num momento do seu passado e lhes guarda simpatia e apreço, ainda que esse mesmo passado possa ter fantasmas hediondos. Fazem parte, não só, da nossa história como também do nosso sentido de pertença, essa chamada identidade. Sentido de pertença esse, que é a cola que nos mantém ligados, e que pela própria força da natureza humana, é dos sentimentos mais fortes nas pessoas e nas sociedades, a pertença a algo maior que nós próprios. Sentimento tão forte esse que, no seu extremo, consegue ser defendido mesmo até ao sacrifício da nossa própria vida.

É aqui que tudo isto se torna perigoso. Apagar a história em vez de a discutir é apagar parte do sentido de pertença de alguém, em vez de tentar fazer ver a esse alguém que as figuras e circunstâncias que glorifica não são puras e impolutas, e devem ser compreendidas antes de mais. O apagamento ou vandalismo não gera essa reflexão, gera divisão, discórdia, ódio e contra-ataque, seguido de toda uma espiral descendente de perda de razão, perda de postura, potencial violência e consequente sangue.

É profundamente errado, insensato e intelectualmente desonesto qualificar o passado através dos olhos do presente. Todavia, não é errado discutir esse passado com esses mesmos olhos do presente para, de seguida, o podermos compreender e qualificar com os olhos do passado.

O Padre António Vieira viveu há 300 anos.

Deixemos que este detalhe assente bem na nossa reflexão.

Há 300 anos.

É intelectualmente honesto e moralmente justo qualificar o pensamento do Padre António Vieira através dos valores morais que nos regem hoje? Valores esses que maturaram ao longo de 300 anos! Claro que não. Tal como não podemos qualificar D. Afonso Henriques de islamofóbico por desbravar território aos mouros há quase 900 anos. Ou qualificar Alexandre o Grande de invasor malévolo do oriente médio há 2300 anos.

Quem leva a cabo este tipo de vandalismo não aparenta saber que o Padre António Vieira foi um homem muito à frente do seu tempo, no entanto, nunca deixou de viver no seu tempo, e de ser moldado por ele. Mais que uma obra de sacerdócio, deixou-nos uma obra literária imensa, e mais que isso, deixou-nos uma obra filosófica em português cujo valor cultural é incalculável. Era favorável à escravatura – embora com algumas restrições – como praticamente todos os homens do seu tempo, pois, era esse o entendimento acerca da vida que, à data dos factos, existia e ao qual era impossível escapar. Era ao mesmo tempo um defensor dos povos indígenas e um crítico forte da própria igreja. Era sobretudo, um pensador como o seu “Sermão da Epifania”, que passo a citar, o refere:

«(…) As nações, umas são mais brancas e outras mais pretas, porque umas estão mais vizinhas e outras mais remotas do sol. E pode haver a maior inconsideração do entendimento, nem maior erro do juízo entre homens, que cuidar eu que hei de ser vosso senhor, porque nasci mais longe do sol, e que vós haveis de ser meu escravo, porque nascestes mais perto? Dos magos, que hoje vieram ao presépio, dois eram brancos e um preto, como diz a tradição; e seria justo que mandasse Cristo que Gaspar e Baltazar, porque eram brancos, tornassem livres para o oriente, e Belchior, porque era pretinho, ficasse em Belém por escravo, ainda que fosse de S. José? Bem o pudera fazer Cristo, que é Senhor dos senhores; mas quis-nos ensinar que os homens de qualquer cor todos são iguais por natureza (…)»

Conforme se pode constatar, Padre António Vieira acreditava que a escravatura, que as circunstâncias dos tempos o obrigavam a ter de aceitar, não tinha sentido aos olhos do seu próprio credo religioso, que defendia que todos os homens eram iguais por natureza. O próprio conseguia ser intelectualmente honesto o suficiente para observar as circunstâncias num prisma racionalizador, em vez de num prisma dogmático. Isto, senhoras e senhores, é viver à frente do seu tempo, pois, este pensamento que foi escrito no sec. XVII, só viu a luz do dia no sec. XX, quando estes mesmos pressupostos começaram a ser embrionariamente aplicados.

E é precisamente por tudo isto que num tempo ínfimo de apenas 17 dias, se consegue, em pleno ano de 2020, ver uma causa justa degenerar no absurdo em menos de nada.

O assassinato de George Floyd demonstra-nos que a vida humana não vale nada, e parte da cadeia de acontecimentos que se sucederam demonstram-nos que a história e a sabedoria também já pouco valem.

Contudo, deve ser realçado que o facto de uma causa justa degenerar parcialmente no absurdo, não torna essa causa menos justa, tal como todas as manifestações anti-racistas pelo mundo fora, não deixam de ser menos necessárias hoje, mais que nunca.