3 Outubro 2017      16:26

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DA QUESTÃO DA CATALUNHA AO TABU DA UNIÃO IBÉRICA

Tem-se ultimamente dado conta com mais clarividência das intenções, cada vez mais intensificadas, de auto-determinação do povo catalão. A questão não é, nem de perto nem de longe, uma coisa recente, e não se afigura nos dias que correm, como algo passageiro, é sempre um tema que adormece e ressurge de tempos a tempos.

As lutas entre Espanha e partes de si própria que desejam ser donas do seu destino não é um assunto de agora. Durante décadas o terrorismo da ETA fez correr sangue por toda a Espanha em prol da luta pela independência do País Basco, terror que só viria a cessar em 2011 com a organização a declarar um cessar fogo definitivo, assumindo o fim da luta armada. A própria Galiza possui uma corrente nacionalista que também defende o direito de auto-determinação do povo galego. E hoje, outra corrente que há muito existe, o nacionalismo catalão é de todos os nacionalismos internos espanhóis, o que se faz ouvir mais alto. A questão que se coloca é: Porquê estas pulsões e sentimentos?

A resposta é simples à superfície, e complexifica-se à medida que se mergulha nela. Enveredemos pela simples.

A península ibérica é um espaço territorial onde coabita e coexiste um vasto leque de povos diferentes, porém próximos. Próximos porque o Império Romano aqui esteve presente, nesta península a quem deram o nome de Hispânia, durante mais de 600 anos, onde nela espalhou a sua cultura e firmou a sua língua (latim). Uniformizando as culturas já existentes numa só, colocando-as debaixo do mesmo Estado, da mesma língua e do mesmo culto (o politeísmo romano de culto ao imperador). Mais tarde, após a queda do Império Romano, que se havia dividido, o povo ibérico é invadido pelos povos Bárbaros do norte da Europa que estabelecem aqui o Reino Visigodo, reino esse que abraça o cristianismo, religião que já tinha sido estabelecida pelo Império Romano ainda antes do seu desaparecimento, bem como, não apaga o latim vulgar como língua do povo, embora as elites falassem Gótico. Por cá estiveram durante 300 anos sem afectar a religião cristã ou o latim vulgar. No ano 711 a península é conquistada pelos muçulmanos, que impõem uma nova língua (árabe) e uma nova religião (islamismo). No norte da península, os reis católicos dão início à reconquista, episódio que todos recordamos das aulas de história, o período mais acentuado da reconquista situa-se entre os anos 914 e 1250, terminando esta em 1492 com a reconquista de Granada, restituindo o cristianismo e o latim vulgar à totalidade da península ibérica.

Todavia este latim vulgar já começava a apresentar diferenças dentro de si próprio, diferenças que variavam de reino para reino. Começava a desenvolver-se a partir do latim vulgar o Galaico-Português (que posteriormente se dividiu entre Galego e Português), o Leonês, língua do reino de Leão (conhecido actualmente em Portugal por Mirandês), o Castelhano, o Aragonês e o Catalão.

Cada reino falante do latim vulgar começava a desenvolver as suas diferenças linguísticas e culturais, porém, essas diferenças, embora fossem notórias, era também notória ainda, a forte proximidade linguística e cultural dos povos peninsulares, que quando comparados com os seus “primos” latinos de França e dos Estados italianos, eram claramente povos irmãos que apenas apresentavam irrelevantes e mínimas diferenças culturais. E é a partir deste ponto que a história da península ibérica começa a complexificar-se.

Os reinos ibéricos começam a fundir-se. A primeira grande fusão acontece entre o reino de Castela e o reino de Leão. A segunda grande fusão acontece entre o reino de Castela/Leão e o reino de Aragão (reino composto por Aragão, Catalunha, Valência e Baleares). Outras fusões houve, porém, para manter o raciocínio simples vamos cingir-nos apenas a estas, pois são precisamente Castela, Leão e Aragão que cobrem quase a totalidade do território espanhol.

Não podemos de todo esquecer o povo basco, cuja cultura e língua são provenientes do período pré-romano, sendo a língua basca considerada língua primitiva.

Ao longo dos tempos o estatuto político dos vários reinos foi-se uniformizando, até chegar ao ponto de centralização em que hoje se encontram. No caminho, o reino de Castela que era o mais vasto e mais poderoso foi-se assumindo como o reino central de Espanha, país por onde espalhou a sua língua castelhana, especialmente a partir do século XVII, com especial ênfase para o período do regime de Franco, já no século XX, onde o Castelhano foi enfiado pela goela abaixo por toda a Espanha, ao mesmo tempo que todas as restantes línguas espanholas eram banidas da esfera pública. Até mesmo os nomes postos a bebés recém-nascidos tinham de ser obrigatoriamente nomes castelhanos, sendo proibidos os nomes nas restantes línguas. Toda esta repressão ainda hoje paira na memória dos espanhóis não castelhanos, particularmente, nos catalães, nos bascos, nos galegos, e nos andaluzes.

Paira na sua memória uma espécie de aversão ao alegado centralismo de Madrid. Este sentimento de revolta, motivado por uma sensação de aprisionamento ao dito centralismo castelhano, é no fundo a justificação que legitima os sentimentos de auto-determinação dos vários povos de Espanha que não se querem ver submetidos a um qualquer tipo de subordinação a Madrid, que os mesmos consideram injusta. O desejo que os move é tão somente o desejo de liberdade. O mesmo desejo que em 1640 movia os portugueses para restaurar a sua independência da coroa espanhola do Rei Filipe III.

Em suma, a questão da Catalunha, do País Basco, da Galiza e da Andaluzia é exactamente a mesma questão que, em 1640, motivou Portugal a abandonar pela força, a submissão à coroa espanhola. Porém, Portugal sempre se verificou suficientemente poderoso para conseguir desvincular-se de Espanha, e sobretudo, era suficientemente poderoso e diplomaticamente astuto para se conseguir manter independente. Estatuto de poder este, que estes reinos mais pequenos não conseguiam alcançar de modo a consubstanciar as suas intenções de liberdade.

Chegamos agora à seguinte questão. Qual foi o preço da nossa liberdade em 1640? Éramos finalmente livres de Espanha, mas tornámo-nos completos vassalos dos Britânicos, que foram quem nos ajudou a conquistar a tão desejada independência. Para um país pequeno como Portugal, essa “independência” teria sempre um elevado custo. Quem beneficiou com esta separação entre Portugueses e Espanhóis? Ingleses e Franceses com os seus impérios sem dúvida nenhuma.

E é aqui que chegamos à segunda parte do raciocínio. O tabu da união dos povos ibéricos. É um tabu, especialmente em Portugal, cuja história que contamos de nós próprios é um longo poema de ódio dedicado a Espanha. Interpretando a nossa Constituição da República Portuguesa, é considerado crime de traição à Pátria, qualquer tipo de tentativa de alienação da soberania de Portugal. É, portanto, tabu, e potencialmente, crime de traição, pensar sequer numa união entre Portugal e Espanha. Vamos chamar-lhe, a criação da Ibéria.

A Ibéria, passando a redundância, é aquilo que defendem os iberistas. Estes defendem que, por partilharmos laços culturais muito próximos, laços linguísticos muito próximos, e no fundo, por partilharmos o mesmo espaço geopolítico que é a península ibérica, espaço territorial isolado do resto do mundo por mar, e isolado da Europa pela barreira natural dos montes Pirenéus, deveríamos todos, por força das circunstâncias da nossa península, viver unidos. Pois como diz o ditado cliché, “unidos somos mais fortes e dominaremos, separados seremos mais fracos, e seremos dominados”.

A Ibéria seria no fundo um país de países, como o Reino Unido ou como a Alemanha. Um Estado federal ibérico onde cada povo teria a liberdade de viver consoante as suas próprias leis e costumes, onde nem mesmo a existência de monarquias e repúblicas debaixo do mesmo Estado fosse um problema. É fácil imaginar uma Ibéria constituída pela República Portuguesa, pela Monarquia de Castela, pela República do Antigo Reino de Aragão (Aragão, Catalunha, Valencia e Baleares), pela República Basca, República da Galiza, República Asturiana e pela República Andaluz. Ou por outro regime, não tendo necessariamente de ser uma república, se assim fosse desejado pelos diferentes povos.

Tudo isto conglomerado num governo central eleito por todos os ibéricos, assim como forças armadas comuns ibéricas. E só apenas por nos encontrarmos incluídos num paradigma económica e monetariamente europeu, é que não contemplaríamos uma economia ibérica e uma moeda ibérica. Continuariamos incluídos no mercado comum europeu e na zona euro, e obviamente, continuaríamos membros convictos da União Europeia, porque como diz o ditado cliché, “unidos somos mais fortes” e as nações europeias divididas, são nada mais que mero peixe miúdo num mar de tubarões mundiais como EUA, Rússia e China. Tal e qual como os povos ibéricos divididos, são mero peixe miúdo num mar de tubarões europeus como Alemanha, França, ou Itália.

Contudo, esta utopia ibérica só poderia ser construída e alcançada num ambiente de tolerância, ponderação e de abertura ao diálogo e à negociação. Teriam, como em qualquer processo de negociação, de existir cedências de todas as partes até ser possível alcançar um acordo político comum, mas sobretudo, exequível.

E é precisamente este ambiente que não existe hoje entre independentistas e “espanholistas”. Aquilo que se vê, quer por parte do governo da Catalunha, quer por parte do governo central de Espanha, é puro incentivo a um clima de promoção da desarmonia, da desordem e de um proto-terrorismo urbano. Não se deseja para Espanha uma guerra de libertação ao estilo da guerra da Jugoslávia, ou o ressurgimento do terrorismo separatista. E para tal, existe a política, o bom-senso e o diálogo. Utensílios que têm estado a ser desconsiderados por ambas as partes. O que poderá conduzir quer Espanha, quer a Catalunha, para uma batida forte no fundo do precipício.

Pede-se mais diálogo. A bem da credibilidade dos povos desta península.

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