O tipo era muito sossegado. Não dizia uma palavra sem pensar nos múltiplos sentidos que essa mesma palavra pudesse ter e nas consequências, nos atos e nos efeitos da semântica proverbial que se acumulava nas intenções do pensamento, a meio que a fugir para uma condensação demasiado hermética das suas ideias. Tinha sempre um fato preto vestido, com uma gravata também preta. Tinha óculos, envergava, no inverno, uma capa escura e usava um chapéus e os óculos eram escuros. Era, resumindo, uma figura meio estranha do panorama da intelectualidade da vila onde vivia.
Morava numa casa de tamanho médio. Devia ter uns três quartos, uma casa de banho, sala, e cozinha. Teria, lá atrás, um pátio, ou talvez fosse um jardim de inverno. Digo, devia e teria porque nem eu, narrador, consegui lá entrar através do meu pensamento ou criação literária. Era, como o seu dono, fechada. O que fazia na vida? Era homem de contas, ou talvez fosse tipógrafo ou outra coisa assim. Também não sei. Não consegui perceber o que fazia. Espreitava nos seus pensamentos, o sítio onde diariamente, menos ao fim-de-semana, entrava.
Imagino que trabalhasse nessas coisas por usar mangas-de-alpaca. Debaixo daquele figurino quase literário, quase sinistro, o tipo era mesmo muito reservado. Na mão, uma pastinha, gasta pelo tempo e lá dentro, papéis amarelos do tempo. Na mão, outra, uma sombrinha colorida. Destoava, pois era, mas quando o homem foi comprar só havia aquela e no seu sentido reservado, meio abalado pelo acontecimento, ganhou o sentido prático e o homem lá comprou o guarda-chuva. O facto de estar a chover torrencialmente nesse dia também ajudou.
Havia, porém, no íntimo deste homem, além daquele guarda-chuva que destoava, uma coisa que tirava toda a reserva e deixava o homem fora de si. Era, nem mais nem menos do que a barriguinha e o apetite. Era louco por umas costeletinhas de borrego, como molho de menta. Não se importava com mais nada quando lhe vinha o cheiro, nem os olhos pestanejavam quando as costeletinhas lhe surgiam no prato à frente. Era uma tara! Uma mania! Ficava fora de si. Podiam ser acompanhadas com batatas fritas, com vegetais ou com outras coisas. Fazia quilómetros para conseguir ir sentir o cheiro e conseguir experimentar umas costeletas.
Não tinha carro, não conduzia. Deixava-se conduzir na loucura dos dias, que na sua vida era tudo monótono. Fugia da vida que tinha para comer. E nunca parecia ter a barriga cheia. Nunca parecia ficar saciado. Era uma fixação. Sei que o homem, residente em Lisboa, foi, de propósito, passar um fim-de-semana ao Alentejo, ali perto de Beja, comer umas costeletas. Apanhou o comboio até Beja, de lá, apanhou a carreira e ficando na modesta pensão que já conhecia de muitos anos anteriores e das viagens que fizera, lá foi. Deixou as malas na sexta à noite, atravessou a rua para o outro lado, tirou as fitas da porta da tasca da frente e entrou. Como habitualmente, sentou-se na mesma que lhe estava reservada e a senhora, de sorriso cândido, serviu-lhe as costeletas como sempre fazia. Comeu ao jantar, no almoço do dia seguinte repetiu a dose, ao jantar e no domingo.
No regresso a Lisboa, passou ainda no talho e levou dois quilos para a semana e para congelar. Era uma delícia vê-lo refastelado e consolado com as suas costeletinhas de borrego.
Na rotina, nos sonhos de cada dia, sempre ocupados pelo aroma e pelo cheiro das costeletas, o tipo andava calmo e iludido. Não tinha mais ambições nem gastava o dinheiro em outras coisas. O fato preto, a sombrinha que não fazia pandan e, no frigorífico, as costeletas de borrego prontas a grelhar.
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