16 Julho 2020      10:34

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Contos breves no tempo curvo - Hamza

Há três semanas atrás eu já não aguentava mais.

A minha vida quotidiana com o ser que habita o meu espelho tornara-se impossível. Ele zombou de mim como se fôssemos Groucho e Harpo Marx, com piadas que só a ele faziam rir.

Então, sem dizer nada, meti-me com a Manuela no carro para uma viagem à Sardenha. Uma ilha magnífica no início do verão, muito verde e cheia de flores, com os aromas da vegetação mediterrânea. Belas praias com poucas construções turísticas, onde eu fazia longas caminhadas lsem encontrar ninguém, como na Nazaré em junho passado.

A água, ainda fria, estava cristalina. Havia poucos turistas por perto. Chamei a esta deslocação uma viagem porque voltei a muitos lugares onde, em um tempo mais ou menos distante, já havia estado: sempre voltamos para onde fomos felizes. Uma viagem também interior, numa reflexão do que tenho sido e do que gostaria de ser. Hoje existem poucas pessoas - se excluirmos os migrantes - que realmente viajam. Uma viagem muda o que és: pode ser um tempo de férias, como suspensão da rotina habitual, mas não é turismo.

Mas de volta a casa:

(Espelho) Bem vindo de volta! Digo-te já que não gostei da forma como nos vimos da última vez: não é educado ficar longe de casa por muitos dias, sem ao menos um aviso, ignorando-me absolutamente.

(Eu) Tens razão, desculpa-me. Às vezes és insuportável e eu preciso de distração, ou seja, parar de pensar... Porque te ris?

(Espelho) Eu estava simplesmente pensando.

(Eu) Bem, refletir é bastante normal num espelho!

(Espelho) O que me faz rir não são tuas piadolas, mas a quantidade de parvoíces que és capaz de dizer. Nós somos o côncavo e o convexo, dois lados de uma mesma moeda, duas madeiras de um embutimento. Não podemos ficar separados, apenas podemos fingi-lo. Além disso,  tens uma maneira estranha de "parar de pensar".  Ouves as notícias no rádio todos os dias e lês as notícias sobre a epidemia nos jornais. Tu és como o náufrago metódico, que conta as ondas que ainda faltam antes de voltar a ser engolido pelo mar, e que as conta e conta novamente, para ter certeza de que não está enganado em relação à cadência do mar.

(Eu) É verdade. A ansiedade torna-nos semelhantes a esse náufrago. Perdemos o foco em problemas muito maiores e mais sérios que já existiam antes desta epidemia e que serão exacerbados pelas consequências diretas e indiretas dela.

(Espelho) Eu diria que adquirimos o hábito de olhar persistentemente para o nosso próprio umbigo e que agora o fazemos com máscara e luvas, a uma distância segura dos outros; não por modéstia, como os números primos, mas por medo de ser infectado. Desempenhamos as nossas estúpidas rotinas, mas com um ar calmo, consciente e inteligente.

(Eu) Porquê estúpidas?

(Espelho) Porque muitos gestos são rituais relacionados com superstição e não há qualquer evidência da sua eficácia, e porque as "medidas de prevenção" são adotadas de maneira desigual e muitas vezes contraditória. Pensa nas luvas: elas favorecem a propagação da infecção porque muitos objetos são tocados com as luvas usadas, sem que as próprias luvas sejam lavadas ou trocadas, pois o utilizador das luvas se sente seguro.

(Eu) Fazemos muitas desinfecções de ruas e espaços, que são tão coreográficas quanto inúteis. Não há vírus à nossa espera na calçada, não há nenhum no quarto que permaneceu vazio por 48 horas.

(Espelho) Bom, dessa maneira, há atividades económicas se desenvolvem ligadas à epidemia e aos medos que ela despertou.

(Eu) Às vezes sentimo-nos egoístas e culpados, porque nos preocupamos com coisas sem importância: por exemplo, onde e quando viajaremos e como passaremos as férias, enquanto muitos estão desempregados e vão comer às cantinas da caridade; para aqueles as férias ou já eram uma coisa desconhecida, ou acabaram-se de vez.

(Espelho) Esta nossa sociedade global prospera com trocas um pouco mais complexas do que o moralismo católico nos sugere. Repara, talvez alguns deles trabalhem em hotéis, restaurantes e empresas de turismo. O nosso "mais que o necessário" é importante porque serve para fornecer aos outros apenas "o necessário".  Enquanto falamos sobre a sociedade global, ainda escreves nesse jornal alentejano?

(Eu) Às vezes.

(Espelho) Para quem escreves tu?

(Eu) Escrevo, antes do mais, para mim; e é claro que fico feliz se as pessoas me quiserem ler.

(Espelho) Portanto, escreves para satisfazer a tua vaidade.

(Eu) Escrever faz-nos ir para áreas escuras, para o sótão ou sob as escadas ...  para iluminar o que é sombrio.

(Espelho) O que é sombrio para ti?

(Eu) O que vejo nos pensamentos que me vêm à mente, cheios de contradições mesmo quando parecem intuições brilhantes. Não entendemos o significado deste tempo curvo e suspenso: é como um abjad – uma linguagem com palavras que são formadas escrevendo apenas as consoantes -  cujas vogais esquecemos e que já não sabemos decifrar.

(Espelho) Compreendes pouco os teus pensamentos e ainda menos a mim. Eu tenho muitas faces, apareço ou não apareço mesmo estando sempre lá, como o Hamza, a vigésima nona - a mais indefinida - das letras do alfabeto árabe. No entanto, estás convencido de que, para um simples efeito óptico, não sou mais que seu grafema escrito na direção oposta, como é feito em hebraico, aramaico e árabe. E tu também tens muitos rostos. Como  estava a Sardenha?

(Eu) Embaraças-me por não te querer dizer como estava. Não quer dizer é mentir. Mas eu vejo-te a sorrir, o que significa que já me perdoaste.

Depois conto-te, agora tenho que ir. No entanto, acho que já sabes tudo.

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Nota do autor: Obrigado por fornecer ideias e materiais para esta conversa: Luis Rosales Camacho (Granada, 31/05/1910-Madrid, 24/10/1992) - poeta espanhol cujo poema, O naufrágo metódico, eu li escrito em azulejos, na parede de uma pequena praça no Realejo de Granada, e dois escritores italianos: Francesco Piccolo (Caserta, 1964) e Gianrico Carofiglio (Bari, 1961) - cujas obras ainda não sei foram traduzidas para o português . A Groucho e Harpo Marx devo a mordaça histórica do espelho em Duck Soup de 1933. Enquanto escrevia, Concha Buika e Chucho Valdés me emprestaram um verso de "Las simples cosas" de Chavela Vargas. A Solidão dos números primos, de Paolo Giordano (Torino, 1982), está na prateleira bem à minha frente.

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Nota do editor: Giuseppe Steffenino, natural do noroeste da Itália, está ligado a nós pela admiração que ele tem a Portugal e ao Alentejo em particular, onde, com a sua companheira, Manuela, foram salvos de um afogamento numa praia o ano passado. Aqui e ali a pandemia está a mudar a nossa maneira de viver e pensar. Esse médico com barba branca, apaixonado por lugares estrangeiros e um pouco idealista, interpreta esse tempo curvo, oferecendo-nos os seus sonhos, leituras, viagens, lembranças, pensamentos, perguntas, etc.