10 Agosto 2020      23:09

Está aqui

Comprei lá uma panela de barro, que ainda uso.

(Eu) Olá, como estás hoje?

(Espelho) Bem, percebes que é a primeira vez que me perguntas?

(Eu) E tens razão. Reconhece que costumas-me dizer coisas irritantes ou desagradáveis.

(Espelho) Refletir sobre o que nos irrita nos outros pode ajudar-nos a entender melhor a nós mesmos.

(Eu) Eu já ouvi essa frase.

(Espelho) Sim, nos livros que estás a ler, mas que não compreendeste.

(Eu) Parece que conheço a música que estiveste a ouvir ontem à noite.

(Espelho) Eh, vejo que a memória não é precisamente o teu ponto forte. A Manuela também diz isso.

(Eu) Lá estás tu a apoucar-me de novo. E deixa Manuela em paz!

(Espelho) Uuh, como estás sensível hoje! Sintra, há 2 anos: diz-te alguma coisa?

(Eu) Sim, uma boa viagem. Também fomos a Portimão.

(Espelho) Burro ou esquecido, ou ambos. E orgulhas-te de conhecer Portugal!

(Eu) Em Sintra, lembro-me de um belo concerto num pequeno teatro, com um público entusiasmado.

(Espelho) Fogo, fogo, adivinha o enigma. Teatro Olga Cadaval, isso diz-te uma coisa?

(Eu) Uma jovem fantástica. Para ela, tocar violão é tão natural como para mim é caminhar na praia. O pequeno cantor também foi impressionante, com o seu sotaque estranho.

(Espelho) Bem, ele é cabo-verdiano, embora more em Lisboa há muito tempo. Mas, meu amigo, confundir Portimão no Algarve com Portinho da Arrábida é um pouco demais.

(Eu) Estás certo, Sr. "Eu sei tudo". Nunca ficas confuso? Fomos a Portimão no ano passado.

(Espelho) Nunca me explicaste o que encontras em Portugal e nos Portugueses.

(Eu) Eu fui para lá pela primeira vez em agosto de 1992.  Numa longa viagem de carro da Itália, cruzámos as Astúrias, Galiza e descemos para o Porto. O fim da ditadura já estava distante, mas as pessoas da minha idade, 38 anos, haviam conheciam o regime do Estado Novo e a guerra colonial enquanto crianças e adolescentes. Não era incomum ouvir histórias sobre as prisões de Peniche ou Aljube. Pareceu-me então um país bastante pobre, semelhante à Itália de que me lembrava na adolescência.

No Porto, na escada do Codeçal que sobe da Ribeira, ao lado da ponte Dom Luís, lembro-me de crianças brincando seminuas. Na praia, famílias num passeio de domingo à tarde com uma toalha de mesa na relva para fazer um piquenique com a comida trazida de casa. Casas e edifícios públicos muito bonitos e muito degradados. Também muitas casas muito pobres. Roupas penduradas em varandas em todos os lugares dos becos. Vida, vida intensa, colorida, cheirando a vida e a caldeirada do marisco. A mesma impressão que tive no mercado de Barcelos: há algum tempo que eu não via uma maravilha como essa, era uma lembrança da minha infância num bairro popular de Turin, nos anos 1960. Comprei lá uma panela de barro, que ainda uso.

(Espelho) Vejo que começamos mais ou menos com Fernão de Magalhães e a história se torna longa. Mas ainda é interessante. Na época, não nos conhecíamos ou, melhor, tu não me conhecias.

(Eu) Voltei 20 anos depois, com a família, a caminho das ilhas Cies, atravessámos a região do Minho, lembro-me que os espigueiros à primeira vista à noite me pareciam túmulos num cemitério. Fiquei impressionado com a beleza de Guimarães. O país havia mudado, não o povo, com sua tristeza alegre, o desejo de falar e ouvir. Descobrimos as maravilhas da cataplana.

(Espelho) As tuas memórias de viagem geralmente contêm referências a alimentos. Na verdade, és um pouco gordinho.

(Eu) A maneira de comer é a maneira de viver. Um lugar onde podes comer, caminhando na rua, um sanduíche com uma sardinha assada comprada numa banca de mercado, sem ser visto com desconfiança ou aborrecimento por pessoas que passam, ou onde vês homens e mulheres de todas as idades sentados conversando à sombra e bebendo uma limonada, é um lugar onde vive-se com facilidade e onde se apreciam os prazeres simples.

(Espelho) E é por isso que, geralmente, precisas verificar quão diferentes são as variações locais da cataplana de tamboril em cada cidade ou bairro. E aquela época em Lisboa na Pensão Modelo?

(Eu) Boa história, estávamos em 2016. Rua das Portas de Santo Antão, atrás da horrível igreja de São Domingos, a poucos passos da Casa do Alentejo. Um lugar muito básico, bastante limpo, muito central. Se tivesses uma chave inglesa, uma lâmpada sobressalente e uma chave de fenda na bagagem, tu conseguirias sobreviver por alguns dias na Modelo.

(Espelho) Tens o gosto completamente ideológico, irresistível e incurável do passado como tal.

(Eu) Não. Ou talvez sim. Os personagens que vimos naquele lugar eram lindos,tanto os convidados quanto os funcionários da pensão. Parecia que poderiamos encontrar Raimond Gregorius em busca de Amadeu do Prado.

(Espelho) Na minha opinião, quando vais a Lisboa, sentes um pouco como si estivesses vivendo uma história ou um sonho. Leste muitos livros de Tabucchi. Talvez tu também tenhas tido um encontro misterioso no cais de Alcântara ou, para a Casa do Alentejo que mencionaste, foste esperar por Isabel.

(Eu) Eu li praticamente tudo o que foi publicado de Tabucchi. Eu sentia muita simpatia por ele, embora nunca o tivesse conhecido pessoalmente. Não pude ver a casa onde ele morava, na Rua do Monte Olivete, no Príncipe Real em Lisboa. No entanto, independentemente de Tabucchi, quando vou a Lisboa, volto à Rua das janelas verdes, para rever As tentações de Santo António.

(Espelho) Vejas que Lisboa também é outra coisa, também há pobreza, miséria e degradação, não apenas sugestões literárias e musicais.

(Eu) Continuaremos este tópico depois «. Agora tenho que ir lidar com as almas bonitas que me esperam no hospital.

(Espelho) Há já algum tempo que não falas sobre o vírus de má sorte.

(Eu) Este tópico também merece algumas palavras depois. Falaremos brevemente.

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Nota do autor: Mais uma vez agradeço muitas pessoas. Além de Karl Gustav Jung, autor do aforismo do espelho, hoje estavam presentes Marta Pereira da Costa, que tive o prazer de ouvir em um belo concerto com Rui Veloso, Tito Paris e Edu Miranda. Antonio Tabucchi (Pisa, 1943 - Lisboa, 2012) foi um escritor italiano, crítico literário, tradutor e académico que ensinou língua e literatura portuguesa na Universidade de Siena; é considerado o maior conhecedor, crítico e tradutor de Fernando Pessoa. Requiem (uma alucinação) é o romance que ele escreveu em português em 1991 (Publicações D.Quixote), cujo cenário me refiro, bem como Para Isabel (romance póstumo, escrito em italiano e traduzido para o português em 2014, Publicaçõoes D.Quixote) Por fim, Jeremy Irons e Martina Gedeck, no inesquecível filme de Billie August, Comboio Noturno para Lisboa, 2013. No Museu de Arte Antiga, en Lisboa, é exibida a famosa obra de Hieronymus Bosch. Agradeço também aos muitos Portugueses desconhecidos que, superando minhas dificuldades com o idioma, conversaram comigo com prazer em vários assuntos, principalmente sem grande importância, nas minhas viagens a Portugal.

Nota do editor: Giuseppe Steffenino, natural do noroeste da Itália, está ligado a nós pela admiração que ele tem a Portugal e ao Alentejo em particular, onde, com a sua companheira, Manuela, foram salvos de um afogamento numa praia o ano passado. Aqui e ali a pandemia está a mudar a nossa maneira de viver e pensar. Esse médico com barba branca, apaixonado por lugares estrangeiros e um pouco idealista, interpreta esse tempo curvo, oferecendo-nos os seus sonhos, leituras, viagens, lembranças, pensamentos, perguntas, etc.