28 Junho 2020      11:08

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Cientifique-se a Política

Se é verdade que conhecimento é poder, é verdade que Ciência e Política têm naturezas e propósitos distintos, porém, indissociáveis. Enquanto que a finalidade científica é a de acumulação de conhecimento, a finalidade política é a de atribuição de valor a esse conhecimento, alocando-o à luz de ideologias e questões filosóficas, sociais, culturais, económicas e tecnológicas. A malha que cientistas e políticos tecem em conjunto é o derradeiro capital social e económico que determina a prosperidade dos países.

A ideia de basear/informar o desenho de políticas públicas em evidência científica não nasceu ontem, tendo ganho maior tração com o governo de Tony Blair no Reino Unido e vindo a ser aplicada em diversos países de forma não sistemática.

Desde o início da pandemia que se realizam encontros, com maior ou menor frequência, nos quais especialistas das áreas da saúde pública, epidemiologia e infeciologia atualizam os decisores políticos sobre os últimos avanços científicos, de modo a que estes estejam aptos para tomar as melhores e mais informadas decisões. Apesar das limitações decorrentes da pandemia quanto ao número de presentes nos encontros, não atendem apenas Presidente da República, chefe e membros do executivo, mas todos os líderes dos partidos com assento parlamentar. Este facto é relevante, porque a ciência não é apolítica, mas é apartidária; ou seja:

a) A ciência tem um carácter inerentemente político, uma vez que é da instrumentalização do conhecimento que se fazem os corredores do poder (quando falo em instrumentalização, não lhe atribuo um sentido negativo, apenas me refiro à utilização que se faz desse conhecimento nas escolhas e apostas em determinadas políticas públicas em detrimento de outras). O carácter político da ciência pode ser observado de vários ângulos. Por um lado, a ciência é democrática, obedecendo a princípios empíricos que apelam ao valor da experiência e da realidade objetiva e partilhada, que deve ser continuadamente analisada e testada- princípios estes fundamentais também à vida em Democracia. Por outro lado, a ciência vive de financiamento e quais as áreas e projetos meritórios de receber financiamento, é uma escolha política. Por último, conhecimento é poder, porque dota de maior capacidade para agir sobre a realidade aquele que o detém.

b) A ciência é apartidária porque a testagem da realidade obedece ao método científico e nada mais, pelo menos em princípio. A verdade não escolhe ideologias, não tem preferências por bancadas na assembleia, nem usa bandeiras ao peito.

Acontece que, apesar da natureza apartidária da ciência, os resultados dos empreendimentos científicos não vertem de igual forma para o espectro político; e, não raras vezes, os agentes políticos selecionam evidências que servem os seus interesses, prestando assim um mau serviço à sociedade. Quem não já assistiu àquele debate político muito pouco sério, em que se atiram números ao ar, retirando-os do contexto, ou em que se apresenta um qualquer gráfico como prova de que dois mais dois é igual a cinco?

Acontece também que o conhecimento adquirido verte lentamente para as políticas públicas. A ideia de que a influência que os cientistas exercem sobre o panorama político deve ser individual e particular tem um problema: a falta de escrutínio e transparência sobre com que conhecimento em mãos estão escolhas a ser tidas e decisões a ser tomadas. Os cientistas estão sujeitos a critérios e aplicam um método muito distinto daquele que é o dos legisladores, mas isso não implica que não possam cooperar com maior eficiência.

A complexidade dos tempos que vivemos pede uma reflexão sobre a necessidade de criação de uma via formal de comunicação entre académicos e políticos.

Criar uma estrutura que não seja chamada a intervir apenas em períodos de crise, mas que esteja presente de forma constante na actividade política com o objetivo de comunicar ciência de forma transversal a todos os deputados eleitos. A criação de uma estrutura deste tipo incentivaria uma mudança de paradigma, de políticas reativas para políticas preventivas. Simultaneamente, a criação de uma estrutura deste tipo, colocaria uma responsabilização acrescida sobre aqueles cientistas que se prestam a usar falsas máscaras de neutralidade para servir interesses privados ou visões políticas, e sobre todos os cientistas, pela necessidade de se fazerem ouvir fora da academia e de melhorarem a forma como comunicam a sua ciência. A criação de uma estrutura deste tipo, incitaria também à literacia científica de todos os que elegemos para nos representar. A evidencia científica não substitui o papel dos decisores. À ciência não compete fazer julgamentos morais, não compete distinguir o bem do mal, o justo do injusto. Aos cientistas compete revelar os factos, a realidade. Aos políticos compete legislar sobre essa realidade. Não é utópico defender que os últimos conheçam bem os factos, a realidade sobre a qual são eleitos para atuar; não é utópico defender que os últimos se devem munir do conhecimento objetivo necessário à formulação e implementação de políticas que cuidem do “bem comum”, que resolvam problemas reais ao invés de obedecer a pressões temporárias e agendas partidárias.