13 Maio 2017      00:32

Está aqui

CASCAS

Estavam sentados à volta de uma mesa de tampo de mármore e pernas de ferro ferrugento, com os pés de borracha. À sua frente, uma meia dúzia de minis e um monte de cascas de amendoim e tremoços. Sentavam-se todos à volta da mesa com o cerimonial de comensais em banquete real mas comiam caracóis e alcagoitas e bebiam minis em vez de ostras, caviar e champagne.

Nas paredes, uma série de calendários que lembravam oficinas e outros negócios. Num dos cantos um letreiro que tinha os seguintes dizeres: Vai entrando, vai pagando, vai bebendo, vai saindo. No outro lado, mesmo em frente, imagem de dois jericos de quatro patas, albardados, pala a tapar um dos olhos, a perguntar quando será que nós três nos vemos outra vez.

No canto, em cima de umas ripas de madeira, estava uma televisão já com uns bons anos. Estava acima de um balcão que condizia com a mesa. Atrás dele estava um homem sisudo, de camisa de alças, que se estendia para fora para conseguir ver a televisão como todos os outros. E na televisão, um longo relvado verde, a voz de um homem a falar depressa e a tentar acompanhar todos os movimentos, contando a narrativa do que por lá se passava. Estava tudo atento à televisão, ninguém olhava para mais nada. Nem as moscas que andavam a pairar sobre as cabeças dos homens, mereciam a sua atenção ou o seu gesto de as afastar. As mãos e os braços só se mexiam para afugentar o árbitro ou mostrar a indignação em relação ao mesmo ou a algum passe menos bem-sucedido. Vestidos a rigor, traziam cachecóis, t-shirts, até calções e sapatilhas tinham na sua indumentária.

É verdade, estavam a jogar o Benfica e Sporting e, por isso mesmo, a noite prometia e as cascas acumulavam-se em cima das mesas. Caótico. Nada desviava o centro das atenções, nem mesmo quando as cascas caíam ao chão e se tornavam num vasqueiro monumental. As garrafas, essas também se acumulavam umas atrás das outras. Cada jogada mais perigosa, após a ansiedade e vinha mais uma rodada de minis.

Devia ir aí a meio da primeira parte, quando uma das equipas marcou um golo que não era penalti. E a casa ia abaixo, e as palavras soltavam-se como uma chama ardente embebida no álcool da cerveja. E as balas, as cascas das alcagoitas e os tremoços, e o lixo acumulado e a tensão na casa e tudo desorganizado, exceto o jogo. O jogo não parava. O árbitro era assobiado. Os homens deixavam que a testosterona subisse, ralhavam, zangavam-se, deprimiam-se e o jogo continuava e as montanhas de amendoins continuavam a acumular-se nas mesas. E já nem se via o mármore. Nos pequenos recipientes de plástico encarnado, uma gota de água no fundo do oceano salgado dos tremoços que lá estavam. Já não há mais. Há cascas fora. E ao lado, minis esvaziadas.

O jogo continuava, quase no fim. A acabar, mesmo, mesmo, e há uma equipa que marca um golo e empatam. E é o desânimo total. Não há ninguém que fique contente. Só as cascas mostravam a ténue alegria que tinha sido o jogo. E o fim termina num apito. O fim das cascas termina nos braços de uma pá, arrastadas por uma vassoura.

Imagem de capa de portugalresident.com