10 Dezembro 2016      11:48

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CADEIRAS

"PARALELO 39N"

O corredor era enorme, quase a perder de vista. Num daqueles palácios antigos, onde as pessoas iam, agora, todos os dias, onde sempre entravam e saiam, nunca passando lá mais tempo do que aquele extremamente necessário, havia uma peculiaridade. O corredor estava pintado de branco, em arco, quase em nada a cobrir as paredes. Nelas, de um lado, janelas grossas, com vidros baços e grades feitas de um ferro tão forte que lembra a nossa história antiga. Tinham, aliás, como não seria de esperar outra coisa, feitos nessa altura. Atualmente já não se faziam assim, mas ficava a memória no ferro, gravada na fundição e cravada na parede, tão grossa como as próprias pedras que, assentes umas em cima das outras eram a essência do palácio. O chão era em xisto, frio, que nos meses de inverno se enchia de humidade e quase dava para apanhar um litro de água só daquela que resumia pelas lajes do chão.

As paredes, como já tínhamos dito eram brancas e monstruosas, mas nuas e sem registo de histórias ou lendas que por lá possam ter passado. Isto, a bem dizer, não era completamente verdade. Havia, nas paredes, três quadros perdidos. Tinham as molduras em talha dourada, já escarafunchada pelo bicho da madeira em alguns lugares mas que mantinham a ideia original de dourar o interior, quadros de família pintados a óleo. No primeiro, grande, o maior de toda a casa e que estava a meio, estava uma cena de caça, onde um homem se sentava em cima de um cavalo e olha com ar dominador para a pessoa que estivesse naquele momento a ver o quadro no ângulo certo. O pintor pintara a cena tão bem que o próprio cão que segurava um faisão com os dentes parecia, ele também, saber todos os segredos do observador e era, a todo o momento, observador a dobrar.

O segundo quadro era mais pequeno e, à semelhança do primeiro, mostrando também ele uma cena caseira, nobre, aristocrática, a imposição, a marca e o brasão histórico daquelas paredes. Nesse quadro, também dourado em toda à volta, uma senhora com grandes brincos e com olhar doce que olhava para a pessoa que a observava como se pedisse para a libertarem daquele cárcere pintado a óleo. Estava triste, os seus olhos mostravam toda essa tristeza e não deixavam dúvidas sobre outras implicações e ilações que se poderia tirar como fossem sobre o contrato que assinara para toda a sua vida com o dono daquele palácio.

Sentavam-se, junto a si, com vestidos igualmente exuberantes, duas meninas, uma mais velha. Teria talvez os seus doze anos, numa pele tão pálida que fazia desconfiar que levara com uma dose bastante avultada de pó talco para a pose fotográfica. Tinha um olhar feliz e não assustava as criancinhas que, diariamente, a observavam. Permanecia, em todos os momentos, imóvel e não reagia às provocações ou aos comentários que não eram, sempre, agradáveis nem providos da mais elementar sensatez. A maioria eram elogiosos e, penso que por isso, o sorriso permanente da pré-adolescente, mulher já, na altura.

Ao seu lado, uma miúda mais novinha, seis, sete, não sei bem ao certo. Vestido igualmente composto, menos pó talco mas um olhar tão maroto que se pudéssemos tentar adivinhar, diríamos que tinha acabado de puxar o rabo ao gato ou aberto a janela da gaiola do pássaro que a mãe tanto venerava ouvir o seu cantar. Olhava de lado e era naturalmente traquinas. Estava, no quadro, como todos os outros, a olhar.

No fundo de todo o corredor, longo e vazio, um quadro mais pequeno e mais comprido. Em altura não se comparava aos outros dois e não tinha já a talha a dourar o rebordo. Este não tinha moldura. Era uma tela simples e nessa tela, em tons escuros e acastanhados, havia um fundo ainda mais escuro, com uma pequena luz apenas que parecia uma porta, não se sabendo muito bem se o era ou não e ao longo do quadro, nove cadeiras, duas maiores e todas as outras mais pequenas. Dava para ver ainda que uma das cadeiras era maior que a outra e ainda mais do que as outras, mas nenhuma era igual. Nenhuma delas tinha dourados. Eram todas castanhas e estavam vazias à exceção de uma das da ponta onde se sentava um menino, sozinho, aí com os seus quatro anos, vestido de calção e camisa branco sujo. Olhava fixamente não quem o observava mas todas as outras cadeiras vazias, quem sabe à espera de quem viesse ou, dado que olhava na direção da porta, quem regressasse. Tinham ido todos embora, quiçá desaparecido e tinha ficado só, pouco tempo antes de quem pisava aquele palácio o deixasse a ele também vazio.

No corredor grande e despido, três quadros, cinco pessoas sozinhas, um frio que escorria pelas paredes, uma criança sem pais e nove cadeiras deixavas assim, vagas…

 

 

Imagem de pinterest.com/explore/early-american-furniture