22 Setembro 2018      09:33

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Bucha à pala

Era um profissional. Andava na vida como quem caminha em cima de uma jangada de bambu, ou de uma sementeira de trigo. Muitas vezes parecia que andava no meio de um milheiral a recolher barbas para se fazer passar por outra pessoa. Com as barbas de milho, as que não enrolava em mortalha e fumava, passava a ser ruivo e sentia-se contente.

No meio dos milheirais passeava e recolhia as barbas com um propósito muito específico. Esse vos hei de contar no decurso desta narrativa. Não gosto de fazer suspense. Andava no meio do milheiral, calcorreava campos e campos. Fazia-o meio encoberto, sob anonimato. O milheiral era tão grande, tão coberto de canas de milho que tinham crescido. No trigo não dava para andar despercebido e as espigas não serviam para fazer barbas e criar disfarces.

O profissional de que vos falo não era artista de circo, nem era mestre de disfarces. Não trabalhava para os serviços secretos nem outra coisa qualquer. Era artista. Só. Tinha um objetivo muito preciso na criação inovadora de disfarces. Passemos aos detalhes.

A vila onde morava era uma vila de tamanho médio-reduzido e nela era conhecido de todos os habitantes. Chamava-se Vitorino Gamarra. Na vila onde toda a gente o conhecia não havia nenhuma rua com o seu nome, mas tinha já ganhado uma alcunha que o acompanharia para toda a sua vida, que acompanharia os seus filhos e depois desses, os seus netos e um dia haveria de se tornar em nome de família. Vitorino era pois conhecido como Bucha à Pala nessa vila.

Apesar de profissional, era ainda um jovem e tinha feito os disparates próprios da adolescência. Era sagaz e matreiro, espertalhão mas preguiçoso. Já tinha idade de trabalhar mas não pensava nisso. Andar nos campos de milho a apanhar as maçarocas ou a desfolhar os pés dava muito trabalho. Mais trabalho ainda dava andar na ceifa. Enquanto os moços da idade dele andavam na labuta, no trigo, na cortiça, nas azeitonas e na apanha do medronho, Vitorino cantava como as cigarras e deitava-se em cima dos molhos do trigo, das largas camas de maçarocas.

Os outros trabalhavam e o Vitorino, Mister Gamarra, de fatinho já ensebado por nunca se lavar, fumava as barbas de milho e pensava no próximo passo, na próxima forma de entrar numa festa e comer de borla. Fazia-o em adiafas. Não esforçava um músculo do corpo a trabalhar mas quando chegava a hora de comer, lá se vestia a rigor e punha as babas de milho e cartola. Fumava cachimbo nesses momentos.

Enquanto na vila ainda não o conheciam, entrava na sala como se de todos fosse conhecido e os comensais, quando viam entrar tal elemento, torciam o nariz mas, dado como maluco, já ninguém dizia nada. Bucha à pala, entrava, comia, fazia-se de conhecido de todos e enfardava. Comia que nem um abade. Andava de barriguinha cheia. Pudera, comia à pala. Assim andou umas semanas a fazer isso, até que todos lhe descobriram a careca debaixo da cartola e acabou-se a comidinha. Se queres comer, trabalha. Faz como os outros que andam a suar nos campos ao Sol.

Profissional, viu que aquilo já não ia render e decidiu expandir o negócio para outra vila. E fez, e foi apanhado. E foi para outra vila, e foi apanhado e assim andou mais uns anos. Trabalhar não queria. Seria uma opção inviável. Trabalhar longe não daria. Neste caso, Buxàpala – nome de família hoje em dia, achava que trabalhar era uma maçada e era um artista. Tinha de dar vida à sua arte. Tinham de lhe reconhecer o talento. Embora assim pensasse, sei por facto, que nunca ninguém lhe reconheceu esse talento. Nada mais do que o primeiro impacto e, triste, anos depois, Buxápala, quando já ninguém lhe tiraria a alcunha, decidiu casar e, vá, apanhar umas couves e fazer o que os outros faziam. Perdeu-se um artista, matou-se um sonho, mas havia comida na mesa dele, da mulher e dos dez filhos.   

 

 

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