22 Agosto 2021      11:22

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Bruxaria matemática no reinado de Filipe I

A necessidade de proteger a confidencialidade de mensagens militares e políticas remonta às civilizações da antiguidade e perdurou ao longo dos tempos, substanciando a importância da criptografia, como ciência ou arte de escrever mensagens cifradas.

Ainda que as cifras usadas pelos pioneiros da criptografia não envolvessem grande complexidade, o sucesso da codificação de mensagens, nesses tempos, era favorecido pelos escassos meios à disposição de quem as tentava decifrar, como vimos em “He gmjve hi Géwev à qáuymre Irmkqe”. Até ao início do século XV foram alcançados alguns pontos altos da codificação de mensagens, com a Cifra de César (sec. I a.C.), a obra em que Al-Kindi (sec. IX) apresenta a criptoanálise baseada na análise de frequência, e o código desenvolvido por Gabrieli di Lavinde (séc. XIV) para uso do papa Clemente VII, mas é em 1466 que a criptografia conquista progressos significativos, com o sistema polialfabético concebido por León Battista Alberti.

No século XVI, época de vastos impérios ultramarinos, em que a administração e defesa de territórios a milhares de quilómetros de distância impunha vigorosa actividade diplomática, mas também época de intensos conflitos na Europa, era frenética a troca de correspondência e premente a necessidade de assegurar que o conteúdo das mensagens só era decifrado pelo seu destinatário. Neste contexto, os métodos de criptografia, aprimorados pelos desenvolvimentos impulsionados pelo sistema de Alberti, impunham-se como garante de segurança na comunicação de decisões políticas, económicas e militares nos reinos e impérios.

Quando, em 1581, Filipe II de Espanha se torna o 18º rei de Portugal, e amplia consideravelmente o seu vasto império, já a sua forte preocupação com a segurança das comunicações tinha despoletado uma reformulação do método de codificação de mensagens usado pelo seu pai, o Imperador Carlos V. O encarregado dessa reformulação foi Luis Valle de la Cerda que, nomeado “Secretário de Cifra” por Filipe II, desenvolveu um método denominado “Cifra Geral” para cifrar as mensagens entre o monarca, os governadores e as embaixadas no estrangeiro.  A “Cifra Geral”, reconhecida como um dos métodos de codificação mais seguros desse tempo, assentava em três componentes: um abecedário, um silabário e um nomenclador.  A combinação destes três componentes permitia a substituição de cada letra da mensagem por um símbolo, a conversão de grupos de letras em grupos de símbolos, e a transformação de palavras em sequências de dois ou três símbolos. Para reforço da segurança da correspondência real, a “Cifra Geral” era substituída a cada quatro anos. Reservada para correspondência sensível, o rei dispunha, ainda, de uma cifra particular que acreditava ser indecifrável.

Beneficiando do contributo do desenvolvimento que a Matemática alcançou no Renascimento, a actividade de criptografia (e criptoanálise), no século XVI, assentava nos esforços dos matemáticos que, ao serviço dos reis europeus, buscavam conceber códigos que não pudessem ser decifrados, e descobrir como decifrar os códigos dos reis inimigos.

No cenário das guerras civis em que França estava mergulhada, e dos confrontos que opunham as tropas do Rei Henrique IV, de França, às tropas católicas da Santa Liga, em 1589 foi intersectada uma mensagem enviada pelo rei Filipe II para Alejandro de Farnesio, Duque de Parma, que comandava as tropas espanholas da Santa Liga.

Dado que o Duque de Parma pertencia ao grupo muitíssimo restrito com que Filipe II usava a sua “seguríssima” cifra particular, a possibilidade de decifragem da mensagem era remota, mas Henrique IV acreditou que seria possível e entregou a mensagem a um dos matemáticos ao seu serviço, François Viète. Após seis meses de trabalho, Viète conseguiu decifrar a mensagem do rei espanhol. Na posse do código que permitia decifrar todas as mensagens enviadas por Filipe II ao comandante das suas tropas, Henrique IV pôde usar outras mensagens interseptadas para antecipar as acções do inimigo, o que culminou, a 14 de Março de 1590, com a vitória do exército de Henrique IV na batalha de Ivry, e a perda da influência da Santa Liga em França.

A superioridade numérica das tropas católicas da Santa Liga fazia supor que seria impossível a sua derrota em Ivry, a menos que o inimigo soubesse de antemão quais os seus planos de batalha. De facto, os espiões de Filipe II, na corte de Henrique IV, descobriram que a vantagem do inimigo se tinha devido à decifragem de mensagens do rei espanhol, contudo Filipe II permanecia inabalável quanto à excelência do seu código secreto, e apontou as forças diabólicas como única possibilidade para a quebra do código.

Decidido a castigar quem tinha ousado quebrar o seu código indecifrável, Filipe II apresentou ao Papa uma alegação de que Viète teria recorrido a bruxaria e magia negra e teria feito um pacto com o diabo para conseguir esse feito “impossível”, solicitando a sua excomunhão. Esta acusação não teve, no entanto, o desfecho desejado por Filipe II de Espanha, e a decisão do Papa nada teve a ver com a crença, ou não, em bruxaria ou magia negra. O Papa sabia, há muito, que as cifras usadas por Filipe II podiam ser quebradas. Trinta anos antes, pouco tempo após a entrada em vigor da “Cifra Geral”, o secretario papal, Triphon Bencio, tinha interseptado uma carta de Filipe II para o cardeal espanhol, Francisco Pacceco, e conseguido decifrar parte do código, possibilitando ao Papa o conhecimento do teor da correspondência secreta entre o rei espanhol e o Cardeal Pacceco.

Apesar da relevância do feito de François Viète, ao decifrar um código que, não sendo indecifrável, era um dos mais seguros à época, foram os seus tratados sobre Álgebra e Geometria, e outros trabalhos nos campos da Trigonometria, Aritmética e Astronomia, que lhe valeram o reconhecimento como grande matemático e fundador da Álgebra moderna.