26 Maio 2018      13:57

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Bloco de notas

Era louco. Ainda será, porventura. Assim o tratavam. Assim se referiam a ele. Completamente doido, alucinado. Andava de capa à Zorro e tinha uma t-shirt do super-homem. Na cabeça usava um chapéu de plumas, à século XIX. Era doido varrido e conhecido da vila toda. Caminhava, nestes trajes e nos seus sapatos de plataforma, avenida acima e avenida abaixo. Não falava com ninguém e usava já uma bengala pois os sapatos de plataforma e a malinha com que sempre andava, eram parte de si, mas pesavam. Nos braços, tatuagens a cobrir aquilo que a capa e a t-shirt do super-homem deixavam de fora.

Assim andava o homem cujo nome desconheço. Sei que era assim porque os meus olhos seguiam os seus passos. Andava e andava, todos os dias, caminhando avenida acima, avenida abaixo. Consegue o leitor imaginar este homem que toda a gente achava louco? Talvez a imagem que descrevo tenha sido criada por mim próprio, na minha cabeça e não exista, mas o que é certo é que existe este homem a quem todos chamam de louco. Desconhecem a multidimensionalidade dele, das suas potencialidades de pensamento.

Não o conhecia antes e hoje, por lê-lo, conheço-o tão bem como não o conhecia antes. A história é longa, mas aconteceu num pequeno parque onde em minutos diferentes nos sentávamos no mesmo banco, debaixo da mesma árvore. Ambos procurávamos aquele refúgio para manter a nossa instabilidade mental. Isso mesmo, leu muito bem, não foi gralha. À nossa maneira, cada um de nós é mentalmente instável. Eu sou, tu és, ele e ela são. Nós somos e vós sois e eles e elas são. Parece coisa de doidos. É.

Aquele banco revelava a nossa história. A do homem que lá se sentou e perdeu o bloco de notas e eu que, algum tempo depois encontrei. Nela estava a vida, nas ripas de madeiras, entranharam-se as gotas de suor, as lágrimas que caíram e se perderam entre as ripas. O bloco de notas e nesse bloco a vida do homem. A sua loucura gravada em folhas de papel, protegidas por uma capa preta.  

O homem era louco. Maluco. Doido varrido. Inventavam-se teorias para o seu estado atual e eram muitas. Tantas quantas as páginas do livro, do bloco de notas. Mas só nesse bloco de notas verdadeiramente se perceberia a razão da loucura do homem que, percebia eu ao ler cada uma delas, sendo louco, doido varrido, maluco, era de nós todos o mais são. As palavras faziam todo o sentido. Era super herói no peito, lutador em prol dos mais pobres na capa, na sua espada com que escrevia as palavras e era uma alma excêntrica, tão diferente como somos um do outro sem que disso nos apercebamos.

Li o bloco de notas e não tinha esse direito. Li a alma do homem sem a sua autorização. Quem nunca procurou ler as almas dos outros? Todos nós, diria eu, todos nós. Seja pela curiosidade de entender o outro, seja pela maldade de aproveitar as fraquezas ou conhecer as forças, todos já fomos e somos curiosos, todos lemos as almas uns dos outros. Que buscas quando me fixas nos olhos, a não ser abrir-me a alma? Li o bloco de notas que era onde o homem louco guardava a sua alma e conheci-o profundamente. Não tinha esse direito, muito embora a minha intenção não fosse prejudicá-lo. Era conhecê-lo bem e melhor. Durante esses dias, estava como que catatónico, o homem. Eu, sem saber ao manter comigo aquilo que lhe dava a loucura e a vida, roubei-lhe o seu bem mais precioso.

Devolvi o bloco de notas ao homem, para que este completasse as páginas do livro, as últimas páginas em branco e senti-me bem. No mesmo lugar onde sempre nos sentámos sem nos cruzar, falámos em tempos diferentes e absorvi parte da sua loucura. De todo este processo, só nunca pude ler as suas últimas páginas, nunca vi a totalidade da sua alma.