22 Julho 2017      10:33

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AVENTESMA

"PARALELO 39N"

a·ven·tes·ma |ê| 

(latim phantasma-atis, do grego fántasma-atos)
 

substantivo de dois géneros

1. [Informal]  Aparição de uma pessoa morta ou da sua alma. = AVEJÃO, ESPECTRO, FANTASMA

2. [Informal]  Pessoa ou objecto assustador, disforme ou demasiado grande.

"aventesma", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008 - 2013, https://www.priberam.pt/dlpo/aventesma.

 

Andava nisto há dias. Não dormia nada. Os olhos estavam que nem dois punhos. As covas dos olhos, já escuras faziam o pequenino do branco sobressair e o raio do homem parecia mesmo uma aventesma. Não havia nada que lhe fizesse passar aquele desconforto. Aquele mau estar. Aquela sensação de ser uma alma presa dentro de uma carcaça. Fechado em casa, sem deixar entrar um raio de luz, o homem murchava como um ramo que não via uma pinga de água há dias e dias. Talvez o problema dele fosse essa falta de hidratação. De facto, a sua vida, nos seus pensamentos, era um deserto onde nada crescia.

De um lado para o outro, aventesma já confirmada, já andava a alma não sabendo que deixara o corpo para trás. Não quisera separar-se dele mas assim teria de ser. Viriam os homens e as mulheres e tratariam dos arranjos que eram precisos ao descanso que seria dado ao pobre homem. A morte é como uma carga de porrada. Sentem-se nos primeiros momentos, mas depois deixa de se sentir. E não se sente nada mais a não ser uma espécie de lençol branco que se prolonga como uma névoa. Como essa espécie de névoa que se prolonga. É uma manhã de neblina em que a luz que se pensa é o sol a nascer. Os raios despontam e as almas já sabem o caminho.

O homem fechava os olhos e não dormia nada. Andava cansado. Como se carregasse uma carga daquelas que uma mula carrega. E naquela casa fechada que era um bréu maior que a noite, estava o quarto do homem cheio de pesadelos, todos à espera de entrarem no seu pensamento. Nos seus olhos, pálidos e amarelados pela quantidade de álcool que consumira, a pele escurecida pela palha queimada em cada cigarro. O homem era como uma aventesma. O seu próprio corpo, já disforme, funcionava como um objeto assustador. Transformava-se ao nascer do Sol e algo mais suave e, à noite, ficava como se fosse um lobisomem. Se existisse tal figura, era este homem. O desleixo, a falta de brio, matavam mais depressa do que o medo.

O dia nascia e as cortinas não se abriam. A manhã trazia a alegria dos pássaros na janela que escarneciam do silêncio fazendo barulhos condescendentes. Elas sabiam, todos sabiam, que ali vivia uma alma penada. Só o homem não reconhecia que os seus sonhos e pesadelos. Que aquele pijama que nunca mudava, a camisa de alças já amarela por nunca ser lavada. O suor entranhado era o medo. Pior do que uma carga de porrada, a morte pressentia o homem e não esperava tão cedo que aquele corpo entorpecido se transportasse.

Parecia uma aventesma, diziam à boca fechada. Imaginavam. Ninguém o via. O homem não se mostrava. Sabia que os seus olhos já não poderiam ver a luz do dia e isso, como uma carga de porrada, consumia mais uma célula que teimava em viver.

Naquela noite como em todas as outras, não dormia nada. Não conhecia o sono tal e qual o sono não o conhecia a ele. Só os pesadelos ansiavam por criar os laços. Naquela noite, fechou os olhos, o quarto continuava escuro e era insensível aos gestos.

Naquela noite, as únicas visitas que teria, em muito tempo, tocaram-lhe na mão e não reagiu. Adormecera. Fantasma.

 

 

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