1 Julho 2017      00:13

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ARJAMOLHO

"PARALELO 39N"

Fui de férias a Portugal em pensamento. Na ideia, há tanto tempo que não pisava o chão do aeroporto de Lisboa. Há muito tempo que ansiava pelo Sol de Lisboa, pelas praias do Algarve e pelas planícies douradas do Alentejo. Nos campos doirados, as árvores verdes e castanhas, algumas alaranjadas pela tirada da cortiça. No Algarve, as laranjas de Silves e de todos os lados. Algumas da baía, outras doces, tão doces em que a vitamina C se transformava em açúcar e deliciava os lábios de todos.

Cheguei à terra do campo doirado, onde a estrada de tijolos amarelos me levava ao feiticeiro de Oz. Não era bem assim, pronto. Era uma estrada de alcatrão escuro, pejada de plantas ladeando o passeio, até ao local de encontro onde me esperava o almoço, preparado nessa altura. Nesse dia em que chegava. Nesse momento em que se encontrava o meu eu que tinha ficado com o meu eu que partira da terra. Levava duas malas quando partira. Trazia duas malas à chegada. Mais carregadas de memórias, mais cheias de coisas que tinham ficado e coisas que tinha trazido comigo.

Em bom da verdade, regressar ao lugar onde se nasceu é como plantar uma árvore e ver a diferença que existe nela, no passar dos dias e dos anos. Voltar ao lugar onde se nasceu é honrar a memória de todos os que lá estão, os que partiram, os que já lá estiveram alguma vez e nunca nos cruzámos. Em cada pedra das casas antigas, ou tijolo das novas construções, há uma ligação com o solo. As raízes de cimento ou taipa são a pedra de toque da construção da identidade dos homens e das mulheres que deixam as marcas, ainda que invisíveis no chão. Ficam os odores e ficam os sons que fizeram eco através dos montes.

Como disse, o almoço esperava-me. Na mesa, o prato que me ocupara os sonhos desde há pelo menos duas semanas antes da partida e chegada. Tinha pedido expressa e delicadamente que me servissem um arjamolho, um prato que certamente deixará o leitor menos conhecedor destes pratos típicos do sul a pensar que raio vai o homem comer. Pois é, há quem também lhe chame gaspacho por aqueles lados, mas não é a mesma coisa. Nunca foi a mesma coisa.

No arjamolho, mais próprio do Algarve mas muito consumido em terras baixo alentejanas, azeite e alho numa grande malga de porcelana, lascada de um dos lados, mostrando que o tempo e o uso moldaram a sua estadia naquela cozinha. Depois, em cima do azeite e do alho, picadinho em pequenos cubos, alinhavam-se os tomates maduros, o pimento verde, pepino e cebola. Misturavam-se todos e não se reconheciam uns aos outro no seio do azeite e do alho. Por cima deitaram-lhe ainda orégãos e sal grosso e o vinagre. Ah, e faltava o pão. Esse pão amassado à mão e cozido no forno a lenha que ficava atrás da casa. Duro, com mais de três dias mas sem bolor. Também em cubos, juntava-se a todos os outros ingredientes e fazia com que a água na boca começasse a surgir com mais intensidade. As papilas gustativas soltavam-se freneticamente e a barriga enchia-se de vontade, gritando lá por dentro.

Faltava ainda juntar a água e alguns cubos de gelo. Pronto. Misturava-se tudo e estava a malga, o recipiente outrora vazio, agora colorido e animado com concentrações de azeite que vinham ao de cima, como a verdade e não se misturavam com a água. No meu pensamento, o apetite. Estava já sentado à mesa e tudo. Faltavam-me só as sardinhas e os carapaus, que a grelha começava a soltar. Faltava o cheiro do peixe tão característico que se juntava também à tentação do olfato e das papilas. E tudo junto, já me enchia o estômago, sem esquecer o presunto e o chouriço que, mesmo pão com pão, acompanhava o petisco.

Levava-me o pensamento e o sonho à noite que denunciava saudades de casa e me lembrava o arjamolho gigante que entrou no recorde do Guiness em 4 agosto de 2004, na bela cidade de Portimão, onde a sopa fria tinha 6000 litros e deu para 4500 pessoas. Fora, dizia-se 5.000 litros de água, 600 quilos de pão, 400 quilos de tomate, 250 quilos de pimentos, 300 quilos de pepino, 300 quilos de gelo, 80 quilos de sal, 20 quilos de alhos, 300 litros de azeite e 200 litros de vinagre. Não preciso de tanto, penso.

 

Imagem pingodoce.pt