14 Março 2016      15:56

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ANTES DE TUDO: SOU PELA VIDA

"INCONSTÂNCIAS"

Na parafernália de todos os dias vejo-me obrigada a ter que compreender a nossa imersão na letargia mental que professamos sem delongas ou demoras. Vejo-me obrigada a compreender que essas delongas e essas demoras não têm lugar no século XXI em que se quer a vida pronta e a prontidão de viver. – Existem dias em que a prontidão se esvanece dos membros cansados dos robôs amestrados que nos fazemos por força e imposição. Enchemo-nos de desculpas que não nos servem porque as sabemos ser desculpas, enchemo-nos de sorrisos abreviados na pouca vontade do sorriso e repetimos uma rotina desligada da pacificidade necessária à alma.

O homem é este ser tão incrível quanto curiosamente contraditório: para encontrar a calma procura o distúrbio, o ruído, a velocidade. Procura ele a calma? Procura a distracção cómoda a uma consciência apenas e somente letárgica e vê-se fugir sem fuga num labirinto de sua criação; qual deus tosco que não é assim tão diferente de deus.

Quando preciso de respirar fundo fujo para o fundo verde e o silêncio que é o mundo a falar connosco e a falar-nos. Quando preciso de espaço para compreender o labirinto sento-me, corpo feito de estrelas, por cima da terra que é a Terra e é só uma mas é tão grande e tão pequena que quase incontável na galáxia onde estou sentada. Não gosto de me sentar aqui porque com a respiração profunda e o silêncio vêm também as perguntas – as perguntas básicas que não fazemos e que estão antes de nós e depois de nós. Se algo me incomoda na forma de estar na vida da actual sociedade é a forma de estar na vida da actual sociedade. Principalmente quando se fala de vida.

O homem habituou-se a ser o único animal que pensa e achou por isso que o pensamento é uma actividade adquirida. Veste o pensamento ora como orgulho, passe que mostra como que dignificando-se e tornando-se especial, ora como maldição e cansaço que carrega nas costas. Veste a vida como um conjunto de actividades cronológicas que são um privilégio pessoal e humano e esquece-se que na definição de vida partilha o lugar com os animais e as plantas. O meio ambiente, o que foi necessário e logo anterior á sua chegada.

Caro leitor, compreenda, em nenhum momento o estou a rebaixar ao nível daquilo a que chamamos, ou queremos chamar, um animal irracional – penso sempre que os conceitos que nos assentam só nós os poderemos decidir – mas devo contar-lhe que a política do ego que tantos vejo aplicar nada tem de racional. Tem sim de egoísta e ignorante. Tem de incompreensível e, muitas vezes, de incompreendido. A capacidade de não compreender.

Raro é o dia em que não passam pelos meus olhos notícias acerca do estado doente do nosso planeta e da forma ainda mais doentia como tratamos o nosso próximo (repare, não nosso inferior, não nosso superior; o nosso próximo) irracional (diriam alguns). Na minha loucura prefiro, para bem da minha sanidade mental, pensar que é melhor ser-se irracional do que cruel e mesquinho – cruel e mesquinho ao ponto de maltratar, magoar, escorraçar, matar uma criatura que não pode defender-se sozinha. Na minha loucura prefiro continuar a ser irracional e a dar lugar á comunhão em que vivo com a natureza e a contemplar mais afincadamente as lições que os animais me ensinaram. Não os racionais, como você lhes chamaria, mas os irracionais.

Aqueles que, muito embora a ciência já tenha classificado como sencientes, nós continuamos a tratar como objectos. Aqueles que, muito embora vivessem aqui antes de nós, são tratados como os que não pertencem e os que estão no local errado. Aqueles que, muito embora estando no seu local correcto, no seu ambiente, na sua casa, nós continuamos a matar porque ou nos apetece ou nos incomoda de alguma forma. Nós continuamos a matar. Quando as palavras “continuamos” e “matar” se encontram na mesma frase deveríamos ficar alarmados. Lutamos contra a guerra nos seus contornos mais alarmantes mas fazemos a guerra no seu aspecto mais simples e natural: nas pequenas coisas com as quais devíamos saber viver.

A semana passada saiu mais uma notícia que dizia que mais um lince ibérico que havia sido libertado no Alentejo foi morto. Não matámos (sim, matámos, porque se não está contra está a favor) um, nem dois. Temos vindo a matar todos aqueles que foram recuperados e inseridos no seu habitat. – Sim, convenhamos, a culpa não pode ser só daqueles que não querem a sua caça desportiva comida (desportiva. Sejamos sinceros e consigamos dizer que hoje as nossas mulheres vão ao supermercado e nós já não temos a necessidade que tínhamos de caçar. Chama-se, ou deveria chamar-se, evolução. Mas isso já é outra temática que discutiremos um dia.), daqueles que não sentem empatia (sabia por acaso que isso no sentido mais extremo pode ser a primeira característica de um sociopata?), mas também daqueles que não adequam a libertação destes e outros animais no seu habitat ou naquele que deveria ser o seu habitat mas que nós reivindicámos como nosso (como um dia já fizemos com pessoas e as suas terras também). Mas se pensarmos bem, o que podemos nós, que não estamos nessa posição privilegiada, fazer quanto a isso?

Exactamente: nada. Nada a não ser tentar compreender que não somos os donos do mundo nem os grandes deuses que o criaram e o fizeram crescer. Também o fizemos, sim, mas com que custo? Não se iluda, caro leitor, um dia teremos de pagar a nossa arrogância para com o mundo e não será bonito. Por agora deveria caber-nos começar a soldar essa divida e acima de tudo aprender a respeita que há outras vidas para lá das nossas vidas. Que precisamos muito mais dessas vidas que essas vidas precisam de nós: afinal, elas estavam já cá antes de nós chegarmos. Que a paz é saber viver em harmonia com o nosso próximo – se não o vizinho que nos aborrece, pelo menos o pássaro que nos canta na árvore do quintal. O pássaro que nos canta sem que precisemos de lhe pagar para que ele nos cante e o pássaro que calamos com um tiro porque não sabemos olhar a beleza simples e fortuita do que nos rodeia.

Posso não saber muito de mim (quem, na verdade saberá?) mas sei que gosto do silêncio que é a água limpa do rio a correr e o chilrear dos pássaros nos campos infinitos do meu Alentejo. Sei que quando preciso de conforto ou simplicidade procuro a água limpa que corre e o seu sussurrar e o piar harmonioso de um pássaro. Sei que demorei a compreender, mas compreendi que a felicidade é esse momento simples porque esse momento é simples e o até o nosso corpo o diz: pertencemos ali. Somos pó, somos estrelas, somos animal. Mais evoluído, pensante, que importa quando procuramos o descanso? Pouco ou nada porque o descanso é reconhecer que não somos robôs amestrados mas parte de um Universo vastíssimo e tão místicos e belos quanto ele.

Posso não saber muito sobre mim mas sei uma coisa que é importante: acima de tudo, eu sou pela vida. Antes de ser pelas pessoas, pelo cego, pelo rico, pelo pobre, pelo espanhol, pelo inglês, pelo racional ou irracional: eu sou pela vida.

E se todos fôssemos pela vida quem teria de coragem de ser pela morte artificial? Se todos fôssemos pela vida e soubéssemos apreciar o ser pela vida, qual de nós temeria, verdadeiramente, a morte?

 

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