Há pessoas a quem voltamos quando os tempos nos parecem mais sombrios. Pessoas que, sem o saberem, nos servem de azimute num contexto que nunca antes navegámos. E, embora a coerência na vida seja talvez o desafio mais difícil (afinal, todos estamos sujeitos à condição humana), o exemplo dessas pessoas torna-se um ponto de orientação e de esperança.
Se ainda estão entre nós, a sua presença é, por si só, motivo para reforçar a crença na decência do mundo.
Escrevo, por isso, sobre Manuel Duarte, ou, como é amplamente conhecido, Manuel Alegre.
Poeta. Escritor. Político. Resistente ao Estado Novo. Uma vida que parece conter várias, desde a militância estudantil em Coimbra à guerra colonial, passando pela prisão, o exílio na Argélia e, mais tarde, a sua intervenção política em democracia, incluindo duas candidaturas à Presidência da República.
A escrita acompanhou-lhe todos os passos. Dela nasceram alguns dos poemas que ficaram gravados na nossa memória coletiva de resistência, como A Trova do Vento que Passa, musicada por António Portugal e eternizada na voz de Adriano Correia de Oliveira.
Alegre é símbolo da resistência. Do exílio sem data marcada para o regresso, mas com a pátria sempre no horizonte.
É o exemplo de quem luta, mesmo sabendo que a derrota é provável, porque há valores que se sobrepõem ao medo e que exigem ação, que não consentem a imobilidade.
Com a sua poesia, foi visionário sem o procurar ser. Escreveu País de Abril dez anos antes de Abril acontecer.
E foi, também, a coragem de se opor aos seus quando sentia que o que estava certo era outro caminho.
É ter a História como aliada da ação. É ter empatia até por quem se encontra no campo contrário e reconhecer que, às vezes, os princípios do outro podem ser tão ou mais válidos que os nossos. É mudar de lado sabendo que o preço pode ser a prisão e a tortura.
Quando escreve “há sempre alguém que diz não”, não é apenas um apelo à resistência. É, sobretudo, um apelo à dignidade. À firmeza nas noites mais difíceis. Aos princípios nos momentos mais escuros.
A obra e a vida de Manuel Alegre ensinam-nos que há algo maior do que a vitória ou a derrota: a dignidade. Por nós mesmos, e por todos os que vieram antes de nós.
Vivemos tempos de grande incerteza. E essa inquietação nasce, em parte, do facto de ao olharmos para a História, reconhecermos nela padrões que julgávamos superados. O som do passado aproxima-se como o estrondo de uma onda prestes a embater no casco do barco.
É por isso que figuras como Manuel Alegre, como José Mujica, que recentemente nos deixou, como Hermínio da Palma Inácio ou Aurora Rodrigues, a mulher mais barbaramente torturada pela PIDE, são faróis em tempos de neblina.
Figuras cuja vida carrega um certo "romance" na forma como disseram “não” ao estado das coisas, mesmo quando a realidade era tudo menos romântica.
E isso, hoje, é inegavelmente encorajador.