9 Junho 2018      11:29

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Aguarela em tons de azul

O céu, quando entrámos no meio da água estava azul, tão azul que se confundia entre o que há em cima e o que há em baixo. Entre nós um suporte de madeira, oval, que nos permitia balançar nele sem molhar os pés. Era uma aguarela em tons de azul, um alívio nos tons cinzentos e carregados dos dias em que o sol não pintava.

Isso mesmo, o sol era um pintor de aguarelas em tons de azul. Algumas delas em tons de outras cores, verdes, amarelo torrado, castanho claro e escuro, mas tinha pintado a terra em tons de azul. Um azul marinho tão escuro e um azul suave que só se via de baixo. Era um pintor de aguarelas que nascera assim. Dizia-lhe a lua que ele pintava como ninguém, quando ele, à noitinha, se espelhava nela.

Eu gostava e gosto de pintar, como o sol. Não tenho grande jeito. Não tenho a perfeição do sol. Não tenho a admiração da lua. Pinto só como experiente conhecedor daquilo que me rodeia. Pinto com os olhos e com caneta. Não tenho pincel de aguarela nem me sairiam bem telas que pintasse a guache. Todos nós temos um dom. Alguns para coisas mais técnicas, outros para escrever, outros pintar, cantar, dançar, sorrir. Todos temos um ponto forte em que somos muito bons. Podemos levar a vida inteira até perceber qual é e, infelizmente, alguns de nós nunca chegam a perceber. A sua aguarela em tons de azul, poder-se-ia dizer, nunca se completa.

No navio que de madeira se constrói, a arca que nos protege e evita os dilúvios, o mesmo sentido de orientação que têm os marinheiros e as bússolas. Sentido de orientação, no meio dos dias. Ponho o pé na água azul e o sal conserva-me a pele como conserva os presuntos e conservava a carne, antes de o gelo e as arcas os terem substituído. Em tons de azul se prolonga o mar.

Levei tela e caneta e guaches, em cores diferentes. Não sabia que quadro sairia da viagem, nem conhecia o porto de destino. As viagens que mais nos impressionam são aquelas cujo destino não conhecemos. Sabemos onde começam mas ignoramos o ponto de chegada, iludimos a meta. Pinto com os olhos aquilo que vejo em duas perspetivas diferentes. O meu olho esquerdo não vê o mesmo que vê o meu olho direito e as duas realidades, natureza morta que faço renascer, em braço, debaixo dele a caneta, a tela e os guaches.

Adormeço no meio do mar a ver o céu azul que nem me separa nem me aproxima do sol. Queria imitá-lo nas pinturas, na sua perfeição. Não quero, todavia, chegar tão perto dele como Ícaro chegou e transformar-me no próprio sol. A pele queimava-me já, ainda à distância e a fonte de água fresca afastava-se do barco onde me estendia. Os meus olhos cegavam-se, fechavam-se e passavam a ver só o azul.

Na água azul, uma aguarela em tons da mesma cor. De cor, o sol a pintar e o meu sorriso a abrir-se. Poetas e escritores diriam que o sol me beijava a face. À noite, apaixonava-me e contava o que o sol me dizia. A lua já sabia de cor as minhas palavras e, em certas alturas do mês, refletia esses pensamentos nas minhas pinturas.

Neste universo tão infinito, onde o fim se desconhece, o meu dom de pintor que escreve aguarelas em tons de azul é ínfimo e perde-se como uma gota de água nas águas calmas que se navegam. A madeira absorve e veda-me os pensamentos. Nada mais sei a não ser o que descrevi. Nada mais ocupa o vazio das águas calmas retiradas ao azul e que se transformam em transparente.

Neste universo tão universal, as palavras, as cores e a imensidão. E o azul em que se transformam os meus olhos. Só o azul e as aguarelas que adornarão o meu leito.