30 Abril 2016      09:07

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A PERUCA

"PARALELO 39N"

Há muitos anos atrás, dezenas deles, não sei bem quantos, mas há muitos mesmo, havia uma loja ali numa rua estreitinha que se chamava a peluqueria. Não era sítio onde se cortasse o cabelo, mas o dono, talvez porque era espanhol, tinha chamado à humilde loja peluqueria. E assim era para que todos vissem e lessem com os seus olhos. Ou melhor, para aqueles que, à época, conseguiam ler. Não eram muitos, mas alguns havia que percebiam as letras e a forma como estas se ordenavam nas palavras e nas frases e nos textos.

Juan, nome de batismo, tinha imenso orgulho na sua loja. Juan decidira viver naquela vila do interior de Portugal. Tinha sido atraído para ali por amor, diziam. A sua história já tinha passado de relato do real a história com nuances e, finalmente, a uma lenda meio nublada de um romance que envolvia uma mulher lindíssima, um rapto, um funeral, maquilhagem, uma viúva, dois caixões, um maquilhador e uma peruca. É pois de perucas que tratava o romance. Em Espanha, lá do sítio de onde era nativo, Juan trabalhava como aprendiz de fazedor de perucas e outras coisas ligadas ao ramo. Ocasionalmente, arte que procurava aperfeiçoar, o seu patrão/mestre fazia também maquilhagem às pobres pessoas que faleciam. Arte muito peculiar nunca antes vista na vila onde Juan agora vivia, mas que, na terra natal do espanhol, era algo normal e com grande procura. Faziam até fila os clientes para conseguir marcar com o maquilhador profissional.

Um dia, o mestre também ele foi maquilhado por Juan que já se tornara, nesses anos, um profissional na área. Com a despedida do mestre, o pobre espanhol, vendo-se sem meios para continuar a vender perucas na loja ou para fazer qualquer corte que fosse, decidiu dedicar-se à feitura de chapéus. Tinha algum jeito de alfaiate, embora nunca o tivesse posto em prática como até aí. Sentava-se na loja e, olhando para a montra, entre quatro perucas, ruivas, louras e negras, diagonalmente dispostas, Juan dava os últimos pontos num chapéu de senhora, daqueles finos, com direito a penas de faisão e tudo.

Na rua, passava uma senhorita, fina e elegante, como nunca antes tinha visto passar. Tal fora a sua surpresa e impressão que Juan se picou com a agulha e deixou as gotas de sangue mancharem as penas do faisão. Os olhos abriram-se de tal forma que pareciam duas bolas a saltar das olheiras fundas do pobre peluqueiro. Apaixonara-se. Não sabia o que era isso, mas sabia que alguma coisa era diferente. Saltava-lhe o coração para fora do peito. O peito era pequeno para aquilo que o fazia estremecer. A senhorita era bonita. Mas quem era? Saltou para a rua, agarrou na primeira peruca e correu atrás da senhorita com a peruca na mão e, embasbacado, sem jeito nenhum para ser galã ou falar mansinho, na tentativa de seduzir, tentou vender a peruca à senhorita.

Estupefacta com a ousadia de tal cavalheiro, ficou ela também sem palavras. Teria tão mau cabelo ou desengonçado que precisasse usar peruca? Depois de estupefacta, ficou indignada e disposta a ofender o pobre apaixonado, mas refletiu e viu nos olhos do Juanito, enternecido, um oceano de amor misturado com as veias vermelhas da parte branca dos seus olhos, efeito de tanto palpitar o pobre coração do espanhol.

A jovem senhorita aceitou acompanhá-lo a comprar um chapéu e, a partir desse dia, seguindo o corrupio normal dos apaixonados, namoraram, casaram, fecharam a loja em Espanha e mudaram-se para a terra de origem da senhorita. Juan trouxe uma só peruca que pôs na montra nova e lá se encontra ainda hoje, em exposição. Aquela não vende, mas conta a história a todos os que lá entram. Não fossem os chapéus e os fatos que passou a fazer, teria já fechado a loja há muito. Mas que podem dois seres apaixonados fazer nos anos das suas vidas, anos dos sorrisos e das recordações? Não podem senão admirar as perucas e caminhar de mão dada ostentando os chapéus saudosistas feitos à semelhança do mestre.

Hoje, as pessoas da vila chamam-lhes os loucos da peluqueria e ambos confirmam. Não negam nem um ponto da sua história louca de amor entre perucas e maquilhagens. O rapto, os dois caixões, a viúva e o funeral, esses fazem parte de outra história. Não esta, mas aquela que a loja conta através da madeira envelhecida pelo tempo.

 

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