12 Setembro 2020      11:08

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2020 - Admirável Mundo Novo

Ano 2020. Devo confessar-vos, genuinamente, que para mim e acredito que para a maioria daqueles que tomarão algum tempo para ler esta opinião, que este ano de 2020 virou completamente de pantanas aquilo que eram os nossos planos, objetivos e expectativas a concretizar com um grau de afinco maior que em 2019. Pois bem, não só tivemos que moderar os nossos sonhos como para mim, vivemos um pesadelo bem real – um pesadelo de um novo padrão de normalidade para o qual eu, pessoalmente, não quero estar desperto.

Admitamos com sinceridade - para autocratas e mesmo diversas democracias enfraquecidas - o Covid-19 representou a chance ideal para o reforço de regimes políticos mais autoritários, repressores das liberdades individuais e de definição de uma cultura assente no medo e na punição psicológica e moral, num nível constante.

Como é sabido por todos, nem que fosse pelas horas a fio relatadas pelos órgãos de comunicação social sobre o tema, foram vários os líderes de todo o mundo que aprovaram decretos e legislação de emergência para combater a pandemia, fazendo expandir o alcance dos seus poderes durante o surto do coronavírus. Questão: - Será que estes poderes e legislação castradora voltarão a cair no futuro num estado de normalidade prévio? Veremos.

Enumeremos alguns exemplos para os mais distraídos em relação àquilo que se passou nos últimos meses: - Na Hungria, o primeiro-ministro foi governando a seu belo prazer por decreto devido à calamidade iminente, suspendo o Parlamento e não prestando qualquer tipo de contas; por sua vez, o primeiro-ministro de Israel fechou os tribunais e iniciou uma vigilância intrusiva aos cidadãos; no Chile foram enviados militares para vários espaços públicos; por fim, entre tantos outros, a Bolívia adiou as eleições.

À medida que o Covid-19 interrompeu e parece continuar a suspender o mundo, fazendo com que cada vez mais cidadãos ansiosos e inquietos exijam ação e um regresso à normalidade, parece que, com o surgimento de uma segunda vaga prestes a eclodir, isso será aparentemente impossível. Grande parte das lideranças em todo o mundo estão de novo a invocar poderes executivos e a conquistar uma nova autoridade, praticamente ditatorial, com pouca ou nenhuma resistência.

Obviamente não sou hipócrita. Foi absolutamente essencial que numa primeira fase da epidemia, onde tudo e tanto estava por conhecer a nível dos impactos desta doença, que acabo por aceitar o pressuposto de que os governos tenham encarado uma situação extraordinária com o recurso a medidas extraordinárias.

No entanto, a minha critica recai sobre uma dúvida muito legitima: - Será que alguns governos estão a usar a crise de saúde pública como uma fachada para proclamarem novos poderes que pouco têm a ver com este surto? Que garantias existem que a sua autoridade não cruze a linha da liberdade individual e do livre arbítrio, quando a situação estiver amenizada? Reflexões que certamente devemos ter em conta num futuro próximo...

Uma coisa é certa, a pandemia já está a redefinir normas socias e culturais no dias de hoje: sistemas de controlo e vigilância de cidadãos invasivos (não, não é só a China); controlo de movimentos com subsequente pena de prisão; a obrigação de não criticar ou espalhar informações que prejudiquem as ações governativas (mais um Ministério a estrear – o do Ódio); etc.

Ou seja, à medida que as novas leis ampliam a vigilância e controlo do Estado sobre os cidadãos, permitindo que sejam violadas as liberdades de associação e expressão, então receio bem que este novo “normal” venha a moldar em definitivo a vida cívica, a política e as economias nas próximas décadas. Ou seja, para tantas democracias, muitas delas robustas, a triste verdade é que a pandemia está a expandir e a favorecer governos com pendor e veias autocráticas e isso, deve-nos preocupar...

Em jeito de conclusão, é bem verdade que o horizonte do ano de 2540 sobre o qual Aldous Huxley debruçou o seu romance – Admirável Mundo Novo – em 1932, está bem distante, numa lógica simples de métrica temporal. No entanto, a antecipação da manipulação psicológica, o condicionamento clássico e os desenvolvimentos tecnológicos a que assistimos parecem, sem margem para dúvida, indicar que estamos a assistir a mudanças profundas e irreversíveis na nossa sociedade. Restará apenas saber  - e a que custo?