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OS CÃES PASSAM E A CARAVANA LADRA

Era uma família nómada que vivia ali na beira do rio. Eram hippies alentejanos que tinham aprendido a conviver com a natureza de forma tão natural que se confundiam com a própria natureza em si. A mãe era as águas e o pai a terra de onde floresciam os vegetais e as frutas com que se alimentavam todos os dias do ano. A mãe era calma como as águas dos ribeiros, sem ondas que só suavemente se tornavam em ondulação. A mãe nunca gritava e nunca se chateava com os quatro filhos que tinha. Vivia no pacifismo das águas. Podiam ter-lhe dado, até, em honra disso, a alcunha de Mãe Água.

DAR UMA MÃOZINHA

Entusiasmado por andar a trabalhar no campo e na lavoura, Antímio esforçava-se todos os dias, do nascer ao pôr-do-sol. Sabia o que custava andar de camisa suada, sabia o que custava beber água tépida para matar a sede. No meio dos torrões secos dos campos, era preciso ajeitar a terra e preparar aquela que viria a ser a cama das sementes para nascerem logo a seguir.

POSTAS DE PESCADA

No Alentejo, antigamente, havia ursos. Já não há. Embora ainda haja em outros sítios do planeta, dizem. Confirma-se. Então é assim, antigamente, quando havia ursos no Alentejo, estes tinham personalidade. Tinham tanta personalidade que fazia impressão. Não havia forma de registar a personalidade dos ursos nesses tempos em vídeo, nem áudio. Era uma pena. Tudo era basicamente uma pena naquela altura e ao mesmo tempo bucólico e apaixonante.

BARATAS TONTAS

Vamos dar, neste texto, uma perspetiva diferente e atribuir características nobres a esse inseto multifacetado, tanto voa como rasteja, que é a barata. Espere. Não deixe de ler já o texto só porque se criou uma imagem de uma barata e já apetece fugir. Há que dar o benefício da dúvida. A barata, para começar, diz que tem sapatinhos de veludo. Ah, não. Espera, essa é mentira da barata. O que ela tem é os pés peludos. Não vou entrar por aqui. Podia, mas não vou.

CABEÇA DE ALHO CHOCHO

Nem mais. Cabeça de alho chocho. Sem rodeios. Cabeça. Alho. Chocho. Nem mais nem menos. Confesso que nunca percebi muito bem a origem da expressão nem porque se poderia chamar a alguém cabeça de alho chocho. Mas existia. E era, de facto, uma cabeça de alho chocho. Ora, depois de uma extensa pesquisa, destinada a escrever este artigo, descobri, eu próprio, narrador, através de uma coisa chamada Google que não me ajudou em nada, nada. Isto para dizer que não descobri a origem. Se alguém souber, pois muito agradeço que aqui deixem o testemunho.

O CACHIMBO DA PAZ

Andavam todos contentes. Mais contentes do que os dias anteriores em que também tinham andado contentes. Era uma alegria, a felicidade, uma coisa tão grande vista do céu. Era isso, o regozijo das pessoas que estavam contentes e uma nuvem de fumo. Ora, era precisamente essa nuvem de fumo que se chamava assim pela junção das duas componentes da designação. Andavam todos contentes. Saltando e cantando. Mais contentes do que na semana anterior, porque nessa semana não tinham andado aos saltos e nem tinham cantado.

ESCADA ROLANTE

A luta começou voraz. Os dois homens agrediam-se mútua e violentamente, no fundo de uma escada. À volta deles, uma multidão de curiosos que sempre se agrega a qualquer confusão ou acidente pela mera curiosidade de ver o sucedido, acicatar os ânimos ou esperar o desfecho de uma cena que mais parecia retirada de um filme de ação. Ninguém sabia dizer se os homens se conheciam ou o motivo do início da violência. Ninguém tinha presente o exato momento em que começara.

A GALINHA

Falemos de animais. Oh, que chatice, esta semana outra vez, dizia alguém que estava mais afastado, a ler ao longe o texto que o outro estava a começar a escrever. Todavia, a história começava. E começava assim. Estavam cinco pessoas naquela sala onde se iria desenrolar o vil caso… Por isso mesmo, avisa-se já o estimado leitor que se trata de um aterrador acontecimento, possivelmente gráfico, suscetível de causar trauma. Se assim, for, como se faz nos anúncios, filmes, tudo, aqui fica o disclaimer (isenção de responsabilidade da nossa parte). Tirando o introito, aqui vai.

A MOSCA SONHADORA

Na pequena localidade da Azinheira de Cima morava uma mosca. Alta, bonita, óculos de sol tipo mosca, sempre vestida com um ar meio esverdeado que parecia quase um vestido de noiva. Cinturinha delgada e brilhantina por cima dos óculos. Os lábios eram escuros e pareciam movimentar-se sempre em busca de algo. Olfato, ui, esse era apuradíssimo. Mas mosca, cujo nome não disse e não se perguntou, por uma questão de respeito e porque, convenhamos, entender o que diz uma mosca seria complicado. Além do zzzzzzz que não nos significaria nada além de zzzzzz.

UM PAR DE PEÚGAS

Pôs uma saqueta de chá adelgaçante numa chávena de chá, encheu a cafeteira de água à medida da chávena, ligou a chaleira elétrica e sentou-se na cadeira. A cadeira recostava-se e deixava que a sensação de ir e voltar se mantivesse numa constante permanente, ao segundo. A sensação embalava-o enquanto abria e fechava os olhos como se estivesse a meditar. Em meditação profunda, o barulho de fundo era o volume da água a ferver na chaleira que se ouvia em gradação.

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