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TEORIA DA GRAVIDADE

Era muito grave. Essa era pelo menos a teoria que corria entre os que se atreviam a falar sobre o assunto. Tudo parecia uma longa história encoberta que caía a cada dia que passava, à medida que se aproximavam momentos decisivos, à medida que se consumiam os últimos troncos de lenha na salamandra que aquecia a casa naqueles dias de inverno. Não nevava. Nevara algumas vezes, poucas, nos últimos 100 anos. Antes disso não havia registo.

O RAIAR DA AURORA

Descansado, entre as folhas e as gotas de orvalho, em cima de uma árvore estranha no meio de outras tantas, o pisco que estava em cima daquele galho meio seco, dormia ainda. De peito vermelho alaranjado, quase como se o sangue viesse das bicadas que talvez tivesse dado nas laranjas das redondezas, mas talvez não fosse assim. A camisa branca estava perfeita. O casaco, esverdeado, protegia-o dos primeiros frios de Inverno que chegara há poucas semanas.

FIGOS E TANGERINAS

Na semana passada, escrevi sobre pastéis de nata e sobre pastéis de bacalhau e sobre coisas. Hoje, a chuva já chegou e a terra já absorveu a água que tanto ansiava, livrando-se da secura que faz com que as goelas se agarrem umas às outras e se tornem uma só. A chuva trouxe às plantas e à terra a cor e a força que precisavam para germinar.

COISAS

Hoje é dia de escrever sobre coisas. Não é porque não me apeteça escrever uma longa crónica sobre coisas longuíssimas, como serpentes ou fitas métricas, mas porque me apetece escrever estas coisas. Sendo alentejano, gosto de falar de coisas dizendo tudo sem dizer nada. A minha avó, quando falava de alguma coisa, falava de o coiso ou a coisa. Referia-se a tudo, sem especificar exatamente o que quer referir. Mas hoje é dia de coisas. Ora vamos lá.

FIASCO

Drumbliava entre drumbles e brumbíades. À noitinha, quando já não se via nada, saía da toca onde se escondia e preparava-se para fazer as malandrices que fazia quando as pessoas começavam a ver menos e algumas a fechar os olhos. Era uma criatura muito matreira, que poucos tinham visto mas muitos tinham já ouvido falar, amplamente, diria eu. Era de uma espécie que só há pouco tempo os cientistas conseguiram identificar – Drumbliofes agudus mas era conhecido na gíria humana como Fiasco. Havia unanimidade em relação a dar-lhe esse nome.

LEILÃO

A sala estava cheia de gente e de coisas. Tanta gente e tanta coisa que as luzes faziam parecer ainda mais coisas e mais gente no mesmo sítio. Era noite de leilão. Nessa noite, as coisas eram muito diferentes do habitual. Quando, naquele salão grande, onde a única presença habitual eram os enormes candeeiros pendurados do tecto e as mesas vazias. Os candeeiros nos dias em que não era dia de leilão, estavam habitualmente apagados, escondendo a sua grandiosidade.

O DIA EM QUE ACABOU O FACEBOOK

Naquele dia, uma sexta-feira treze, dia de azar para muitos, o Ti António, homem octogenário mas todo moderno nestas coisas da internet, levantou-se cedinho e dirigiu-se ao computador portátil que estava em cima da mesa, ao lado da garrafa de vinho caseiro, do pão e do presunto que tinha sobrado da ceia do dia anterior.

DAR ÁGUA PELA BARBA

Os rios são fronteiras naturais que nos impedem de chegar ao outro lado se não tivermos barco. Os rios são linhas que se curvam e descurvam na longitude e latitude da geografia, da terra, das coisas e do ser humano. Havia um rio que começava numa nascente e crescia, em gradação, do sul para o norte, em claro desafio das leis da física. Não era o único, mas era aquele que ficava perto da povoação de Cortes. Era um rio grande já quando se encontrava com o homem. Era um rio encorpado onde viviam peixes, plantas aquáticas e tantas outras coisas nas suas margens.

SUAR AS ESTOPINHAS

Eram duas cegonhas. Moravam ali a seguir a Castro Verde no caminho que vai para Aljustrel, antes do Carregueiro. Moravam no mesmo ninho em cima de um poste de pinho que servia de apoio às linhas do telefone. Alguém se tinha lembrado de pôr lá uma forma de segurar os ninhos e este casal de perna-longa, recém-casados, cegonho e cegonha. Conheceram-se há muito tempo, o seu falar era tão distinto quanto as longas patas e pernas ainda mais compridas, quase que como a fazer concorrência ao seu longo bico. Tudo era por um motivo e esse motivo confundia-se com a essência dos casais de cegonhas.

FERVER EM POUCA ÁGUA

Fazia mesuras o dia inteiro. Andava meio tonto metade do dia e dormia a outra metade. Havia quem dissesse lá na cidade grande que era maluquinho. Talvez fosse. Não se sabia muito bem se era por causa das mesuras que fazia o dia inteiro, se porque andava tonto meio dia ou se porque dormia a outra metade. Ele não se chateava muito com isso. Nem se importava lá com as coisas que diziam dele. Fazia mesuras. Antes de se tornar meio tonto metade do dia era artista de circo e tinha andado por tantas terras como letras do alfabeto multiplicadas por vinte. Bem, tinha andado por muitos lugares.

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