4 Outubro 2014      01:00

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"A revolução dos Guarda-chuvas" – a luta de Hong Kong pela liberdade é um desafio para a China

Porque é que a luta territorial pela democracia é um desafio para a China?

O tornado que se abateu em Hong Kong tratou com rapidez dos guarda-chuvas, contorcendo-os e transformando-os em esculturas Calder, feitas tecido e metal.

No final da tarde, do passado 28 de setembro, o primeiro tornado da época abateu-se sobre o território perto do mar do Sul da China, milhares de guarda-chuvas espalharam-se pelas ruas de Hong Kong. Nesse final de tarde protegiam, não da chuva ou do vento, mas do gás pimenta e do gás lacrimogéneo. Uma das cidades mais segura e ordeiras do mundo – uma metrópole com 7,2 milhões de habitantes e que só conheceu 14 homicídios na primeira metade do ano – tornou-se um campo de batalha, assim que a polícia antimotim, com máscaras antigás, deitou químicos nocivos sobre milhares de protestantes que exigiam maior compromisso democrático dos soberanos do território em Pequim.

Assim que a primeira bomba de gás lacrimogéneo explodiu em Admiralty, uma zona de Hong Kong conhecida pelos seus enormes edifícios dos bancos e impressionantes centros comerciais, os manifestantes armados com nada mais senão guarda-chuvas e outras armas improvisadas – impermeáveis, óculos de laboratório, óculos de esquiar, pacotes de leite e películas adesivas - desafiaram os gases e continuaram em frente. Os protestos, levados a efeito por pessoas de todas as classes e géneros sociais, foram galvanizados pela crescente revolta com a decisão do governo de Pequim em proibir, no final de agosto passado, o direito dos habitantes de Hong Kong de eleições livres, em 2017, para escolher o seu líder máximo, conhecido como “Chefe Executivo”.

Quando o outrora integrante do Império Britânico se reunificou com a China, em 1997, a Hong Kong foi prometido uma governação “um país, dois sistemas” princípio que garantiria a autonomia por 50 anos. Mas os manifestantes receiam que, somente 17 anos depois da entrega, que as liberdades que diferenciavam Hong Kong do restante território chinês estejam a desaparecer.

Chocados com os lançamentos dos gases pimenta e lacrimogéneo, que magoaram dezenas, o movimento de protesto ganhou força no desespero. “Nós não tememos o governo chinês” disse Kusa Yeung, redatora de 24 anos, que ajudava a distribuir água aos colegas manifestantes pouco depois da meia-noite do dia 29. “Estamos a lutar por uma democracia justa.” Começou a revolução dos Guarda-chuvas.  

A campanha de desobediência civil em Hong Kong, que começou a 28 de setembro com o movimento “Occupy Central With Love & Peace”, - por ter sido nessa área central da cidade onde tudo começou – rapidamente ocupou também a baixa da cidade, ao longo de dois centros comerciais chave, e as áreas turísticas.

Mas apesar dos inconformados, com os seus guarda-chuvas e enfeites amarelos, terem captado a atenção do mundo, não conseguirão derrubar o Partido comunista Chinês no poder.

A “República do Povo” celebrou os seus 65 anos de existência no dia 1 de outubro com lançamento de foguetes e fogo-de-artifício e com uma parada militar em Pequim, um símbolo da inquestionável adesão do partido no país – contudo o fogo-de-artifício foi cancelados em Hong Kong.

Ainda assim, os protestos dominaram as atenções e fizeram esquecer este pequeno erro da parte do homem mais forte da terra-mãe, da China, o presidente Xi Jinping que se vê assim com um dilema inesperado quando o partido enfrenta já algum descontentamento em casa. Os efeitos colaterais de 3 décadas de desenvolvimento económico desenfreado – um ambiente poluído, crescente aumento dos lucros, proliferação da corrupção – contribuíram para uma perturbadora sensação, em toda a China, apesar do seu considerável tamanho, de que as coisas não estão tão calmas como se julgavam estar. “Os manifestantes de Hong Kong eram o último que Xi Jinping quereria ver.” Revela Jean-Pierre Cabestan, um cientista político na Universidade Baptista de Hong Kong. “Ele tem tantos outros problemas para tratar.”

Sendo um hábil nacionalista, Xi Jinping e a sua corte culpam regularmente as “forças externas” por fomentar a desordem na China. Um artigo sarcástico posto na internet a 29 de setembro, no “People’s Daily” (“O Diário do Povo”), o jornal mensageiro do Partido Comunista chinês, acusou os protestos de Hong Kong serem orquestrados pelas “forças anti China… cujos corações pertencem à lei colonial e que estão obcecados com a “democracia ocidental.” 

Mas, se há algo que a confusão em Hong Dong, em conjunto com outras manifestações de descontentamento social são, é serem provocadas pela liderança centralizada da China, que fez pouco para conquistar a os corações e mentes da periferia do país. No discurso do Dia Nacional, em Pequim, Xi Jinping proclamou que “os líderes nunca se devem separar do povo”. Contudo, em simultâneo, as autoridades detinham manifestantes, na China continental, que expressavam solidariedade com os protestos de Hong Kong.

Em lugar de aproveitar o característico pragmatismo temperamental de Hong Kong, o governo chinês passou o verão a esfregar na cara de Hong Kong a sua impotência política. Primeiro, Pequim enviou um documento que declarava a “jurisdição plena” do governo central sobre Hong Kong e passou por cima de consideradas instituições locais com Estado de direito.

Depois, a 3 de agosto, o governo chinês ordenou que os cidadãos de Hong Kong podem escolher o “Chefe Executivo” – mas só depois de um comité de Pequim ter escolhido dois ou três candidatos que considerassem adequados para o lugar. (Normalmente, compete ao colégio eleitoral escolher o “Chefe Executivo”.) “Rejeitar a democracia em Hong Kong virou o feitiço contra o feiticeiro.” Refere Maya Wang, uma observadora da “Human Rights Watch”, residente em Hong Kong. “As pessoas aqui agora perderam a confiança no governo central. Tentar branquear os protestos só levou a maiores protestos.” Mesmo que os manifestantes dispersem, esta quebra de confiança, que é fundamental, muda o jogo político de Hong Kong.

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A revolução dos Guarda-chuvas

Se os outros distúrbios democráticos são definidos por uma simples época ou descrição, a escolha do guarda-chuva para simbolizar a luta de Hong Kong é tão adequada quanto improvável. Os guarda-chuvas podem ser de milhentas cores, combinando com a cidade poliglota que teve origem nas lutas entre famílias do Este e do Oeste, nenhuma das quais contribuiu muito para a democracia de um punhado rochas do mar do sul da China (referência à ilha de Hong Kong).

Os guarda-chuvas são também um instrumento prático, não com estilo mas vital, um pouco como este centro financeiro que serviu como entreposto para os grandes mercados da China continental. O mote é a eficiência. Os manifestantes limparam o lixo provocado logo após a dispersão dos gases.

Os voluntários que transportavam os mantimentos doados até tinham água com gás, oferecendo San Pellegrino aos manifestantes agastados, perto das 3 da madrugada de 29 de setembro.

Nem as lembranças do gás lacrimogéneo, nem a chegada da semana de trabalho, numa cidade viciada em trabalhar, diminuiu a multidão na segunda e na terça. À medida que a polícia de choque retirava de baixo de um coro de críticas pela utilização de gás lacrimogéneo, os protestantes encheram ainda mais aquele que é já um dos lugares mais populosos do mundo, com famílias jovens a arriscar sair à rua com os seus guarda-chuvas.

William Ma, 47 anos, trouxe a filha Dorothy, de 11, para o protesto marcado para 30 de setembro. “Quando eu era pequeno não havia democracia.” - disse William – “Talvez eu já não esteja cá para ver, mas ela pode ter uma vida melhor se poder viver em democracia.”

A mentalidade ansiosa do fim-de-semana deu lugar a uma alegria carnavalesca, à medida que os corretores da bolsa se juntavam aos jovens que iniciaram os protestos. Os adolescentes dos liceus fizeram os trabalhos para casa no chão da rua, trabalhando com as suas calculadoras científicas debaixo de um sol escaldante. Alguns dos manifestantes admitiram que eram novatos, galvanizados para ação política pela mão dura da polícia. “(as pessoas) Estão a levantar as suas mãos sem armas, e eles usaram gás lacrimogéneo sem avisar.”, disse Raymond Chan, professor de matemática, que se juntou ao movimento na segunda - “Mas isso só fez com que ficássemos mais fortes e unidos.” (ver vídeo)

Um movimento destes em Hong Kong ameaça a unidade nacional e Xi Jinping e Companhia estão motivados em mantê-la.

Apesar da enfase de Pequim em enaltecer a segurança nacional – os aparelhos de vigilância recebem mais fundos monetários do governo que os militares – essas linhas de segurança estão erodidas. Além de Hong Kong, os grandes enclaves étnicos do Tibete e de Xinjiang estão a revoltar-se, com violência nesta última, uma região islâmica que perdeu milhares de vidas no último ano. Taiwan, a ilha que Pequim quer desesperadamente, desde os tempos em que os nacionalistas de Chiang Kai-shek fugiram de lá após perderem a guerra civil de 1949, tem-se assemelhado economicamente com a China continental. No entanto, a crise de Hong Kong falou mais alto até nos integracionistas de Taiwan, tornando a vida mais difícil a Xi Jinping defender que a teoria de “um país, dois sistemas” pode trazer a ilha de volta ao casulo. Mesmo os ativistas na pequena Macau, a ex-colónia portuguesa que passou para a administração chinesa em 1999, ainda mais tarde que Hong Kong, está a exigir maior abertura na escolha dos líderes locais.

Os lamentos de Hong Kong pela democracia tiveram efeitos muito além dos seus 1,035 km2; desafiaram diretamente a narrativa da república unificada das pessoas.

“ A verdade é que Hong Kong está mais que pronta para a democracia” escreveu Anson Chan, um ex-secretário do Chefe Executivo, o número 2 no território, num comentário exclusivo à TIME. “É a China que não está pronta para uma Hong Kong governada democraticamente porque teme não conseguir controlá-la.”

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Universo alternativo

Há três décadas, quando a primeira-ministra Margareth Tatcher e Zhao Ziyang assinaram a Declaração de Cooperação Sino-britânica, ficaram acertadas as condições para que Hong Kong voltasse a ser chinesa, em 1997, que até então era considerada uma área apolítica, uma cidade motivada de homens de negócios e banqueiros que obedeceriam a aquém quer que fosse que mandasse – desde que houvesse dinheiro para se fazer. Nessa época, era a China comunista que estava em via de ver surgir tumultos políticos. Cinco anos antes, os tanques tinham esmagado os protestos dos estudantes pró-democracia em Tiananmen. Centenas, senão milhares, de estudantes e outros manifestantes pacíficos foram massacrados. A paixão política foi apagada da China continental, e a liderança chinesa aprendeu os perigos de permitir aos estudantes idealistas pregar a reforma nos locais públicos. 

Xi Jinping usou o nacionalismo para argumentar por um centralismo ainda mais forte. Como chefe militar da China teve uma posição mais assertiva na disputa das águas internacionais, irritando os vizinhos da China. Desde que assumiu o poder em 2012, Xi também encabeçou um corte dos direitos civis, deteve centenas de defensores dos Direitos humanos, desde advogados e bloggers, passando por jornalistas e artistas. Não se mostrou alérgico à repressão desde que isso significasse proteger o partido das pessoas. Em setembro, Ilham Tohti, um académico moderado da minoria étnica de Uighur, que vivem em Xinjiang, foi sentenciado com pena de morte. O seu verdadeiro crime? Chamar à atenção na internet para que a China respeitasse as leis autónomas regionais.  

Entretanto, Hong Kong estava ocupada em busca da sua voz política. A cada aniversário de Tiananmen, dezenas de milhares reúnem-se para vigílias com velas em Hong Kong, o único sítio na China onde essas homenagens são permitidas. Em 2012, os habitantes recusaram uma proposta para incorporar o dogma patriótico no seu sistema educativo; um movimento de protesto conseguiu evitar esta legislação educativa.

Ao mesmo tempo, os habitantes de Hong Kong descobriram as vantagens competitivas de um território com tribunais sem restrições, uma imprensa vibrante, transparência financeira, um serviço público limpo e de uma atitude recetiva face aos estrangeiros – foi precisamente isso que evitou que se tornassem em mais uma cidade chinesa. Se Pequim ameaçou este conjunto de valores, quais são as previsões para Hong Kong? “Hong Kong ainda é único, mas vemos uma evidente trajetória de declínio.” Diz Willy Lam, professor assistente no Centro de Estudos Chineses da Universidade de Hong Kong.

 

Um país, dois sistemas

Não é fácil, por agora, acompanhar a aparentemente inevitável colisão entre Hong Kong e a China, entre dois sistemas muito diferentes que tentam coexistir numa única nação. Qualquer tentativa de diminuir as diferenças tem sido desadequada. Leung Chun-ying, o impopular Chefe Executivo apoiante de Pequim, tentou diminuir as diferenças, entre pedidos para que resignasse.

“Hong Kong é uma democracia num contexto de “um país, dois sistemas”, disse Chun-ying a 28 de setembro, antes do ataque com gás pimenta começasse. “Não é uma democracia independente.” Chun-ying que acabou por classificar o novo processo de eleição do Chefe Executivo como um processo que “não é o ideal, mas é melhor.”

Melhor não é suficiente, particularmente para as gerações mais novas que ocupou as ruas de Hong Kong em grande número e com grande paixão. Tal como os seus equivalentes do continente, estes jovens lutam para que o discernimento das suas vidas materiais corra riscos de não melhorem tanto como as dos seus pais uma vez melhoraram.  O método principal de fazer riqueza em Hong Kong precisa de ser diversificado e ir além do imobiliário, tal como o do resto da China precisa. Os preços das casas aumentaram tanto que gente normal em cidades grandes tem que poupar toda uma vida para ter a sua própria casa.

Han Dongfang, um ativista empenhado que foi preso por ajudar a organizar os protestos de Tiananmen, há 25 anos atrás, e que vive agora em Hong Kong, disse que os jovens ativistas de hoje “sabem melhor o que querem” que o que eles sabiam quando ele era jovem. Na segunda à noite, na quente e híper-populosa zona de Mongkok, um alfaiate de 76 anos chamado To Fu-tat enviou uma mensagem de grande importância aos estudantes de Hong Kong. “Eles são a esperança da China” – disse.

Contudo os estudantes ativistas – independentemente de quão cívica for a sua desobediência civil – são precisamente o que Pequim mais teme. É na memória política chinesa que a tragédia de Tiananmen atinge maior relevo.

Regina Ip viu-se forçada a resignar como Chefe Executiva de Hong Kong, em 2003, depois de meio milhão de cidadãos de Hong Kong terem marchado contra a lei anti subversão que ela apoiava. Hoje é uma das principais representantes do Novo Partido do Povo. “Os meus sentimentos são os de que os organizadores (da manifestação) fizeram tudo isto para replicar o incidente de Tiannamen em Hong Kong.” – disse. “E os interesses de pessoas como nós em Hong Kong? Queremos paz e estabilidade? Os problemas…devem ser resolvidos num diálogo construtivo e não com protestos nas ruas.”

As sondagens em Hong Kong revelam que um número significativo – sensivelmente metade da população, por estimativa – deseja aceitar a proposta eleitoral proposta pela China. Os protestos são maus para o negócio e, para todos os alarmistas de Tiananmen, é difícil imaginar Xi Jinping ordenar às tropas chinesas que partam cabeças em Hong Kong. Contudo, dada a sua antipatia pelas reformas políticas, é igualmente difícil que ceda terreno às forças democráticas de Hong Kong.  

Nem mesmo os protestantes imaginam que as suas exigências – quer a resignação do Chefe Executivo Leung, quer a verdadeira liberdade eleitoral para escolher o líder do território – serão cumpridas. “É muito improvável que Pequim reverta a sua posição”, considera Audrey Eu, presidente do Partido Cívico, que apoiou a manifestação. “Mas as pessoas em Hong Kong devem resistir e defender-se.”

A “Revolução dos Guarda-chuvas” já ganhou uma importância ampliada. “As pessoas na China pensam que Hong Kong pertence à China” – diz Julian Lam, estudante de 20 anos. “Mas as pessoas de Hong Kong pensam que Hong Kong é parte da China, mas que pertence ao Mundo.” Em cada um dos cidadãos que se insurgiu, tossindo e chorando, preparando-se para enfrentar outra ronda de gás lacrimogéneo, uma convicção cresceu: a luta pela liberdade não é, como o governo chinês alega, uma orquestração ocidental pensada para pôr em causa a autoridade de Pequim, mas uma aspiração universal. Deixem que os guarda-chuvas de todo o mundo se unam. 

Ver vídeo “O que está em causa em Hong Kong?” aqui.

 

Fonte: Reportagem de Elizabeth Barber, Rishi Iyengar, Emily Rauhala and David Stout/Hong Kong em artigo de Hannah Beech para a Time

Pesquisa e tradução de Luís Carapinha